quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Perdido na Multidão: notas sobre o 17 de junho




No dia 17 de junho de 2013, eu me encontrava no IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ) desde as 13:30. O motivo profissional era participar de uma banca de mestrado entre 14 e 16 horas. Porém, sabendo da boa localização do Instituto, que fica no coração do Centro do Rio, pretendia também sair da banca e acompanhar as manifestações que iriam ocorrer naquele final de tarde. Meus motivos pessoais eram dois: a) a curiosidade de ver pessoalmente os participantes, suas palavras de ordem e seu repertório de ação coletiva; b) o desejo de me juntar aos que protestavam contra a repressão policial que se abatera sobre manifestações similares nos últimos dias.

Ao sair da banca pouco depois das 16 horas, o que vi no pátio do IFCS? Havia vários jovens, entre 18 e 25 anos, pintando faixas e cartazes, aparentemente sem uma coordenação central. Vi garotos e garotas que visivelmente tinha alguma experiência de militância política, pois vestiam camisas da campanha de Marcelo Freixo à prefeitura do Rio e pintavam dizeres que ecoavam uma leitura mais “à esquerda” do protesto. Uma grande faixa amarela dizia “Não é por centavos, mas por direitos”. Ao mesmo tempo, via outros jovens com cartazes próprios, que traduziam um sentimento difuso de indignação, e não uma pauta política mais específica. Esses diziam coisas como “Verás que um filho teu não foge à luta”, “#Vem pra rua” etc.

Do lado de fora do IFCS, com o Largo de São Francisco já bem cheio, havia uma caixa de som com um jovem falando ao microfone. Era um militante político com alguma experiência, pois suas falas e músicas traduziam a visão dos jovens com alguma socialização de esquerda. Na praça, eu via muitos cartazes particulares e algumas bandeiras de partidos, basicamente do PSOL. Encontrei também militantes mais velhos – digo, da minha geração -, boa parte deles vinculada ao PSOL ou simpatizante.

Quando a manifestação saiu do IFCS em direção à Candelária, percebia que os temas principais das músicas eram a luta contra o aumento da passagem e a crítica aos gastos com a Copa do Mundo. O governador Sérgio Cabral também era alvo preferencial da garotada, provavelmente por conta da repressão policial conduzida pela PM em eventos anteriores. Havia muitas bandeiras do Brasil, gente com cara pintada de verde e amarelo, e juro que ouvi mais de uma vez o chatíssimo coro de “Eu sou brasileiro/ com muito orgulho/ com muito amor”. Na frente da manifestação, muitas bandeiras, em especial do PSTU e do PCB. Em determinado momento, quando já estava na Rio Branco, ouvi um coro de alguns manifestantes contra a presença dessas bandeiras na manifestação. Mas, até onde acompanhei, as bandeiras continuaram.

Havia diversos grupos políticos organizados além dos partidos à esquerda do PT. Vi gente do movimento LGBT e uma bandeira do arco-íris. Vi também gente ligada à luta de médicos e de enfermeiros contra a desativação do IASERJ. Por outro lado, vi cartazes inimagináveis numa manifestação classicamente de “esquerda”, como um que dizia “Por uma política monetária séria!!”

A manifestação era difusa, com diferentes grupos ao longo dela, sem um carro de som que coordenasse a massa ou discursos de lideranças que reiterassem uma agenda comum. Os momentos de maior vibração dos manifestantes ocorreram quando estes percebiam que papel picado era jogado do alto dos prédios, ou quando o povo que trabalhava nos escritórios da Rio Branco piscava as luzes em sinal de apoio. Nesses momentos, parecia-me que o ato de estar na rua de forma coletiva era mais importante do que a própria expressão de uma agenda política mais precisa.

Ao longo do trajeto, encontrei alguns colegas de geração e outros mais velhos, a maioria professores universitários. Vi também algumas figuras mais carimbadas da política de esquerda do Rio. Todos, em geral, pareciam mais curiosos do que propriamente entusiastas participantes. Afinal, por que eu e outros parecíamos perdidos na multidão?

Em primeiro lugar, havia um evidente viés geracional. Era uma manifestação de jovens entre 15 e 25 anos, em sua esmagadora maioria. Não que só houvesse esses jovens, mas eles pareciam dar a cara da manifestação. Além disso, eu não conseguia localizar claramente os grupos e movimentos sociais aos quais me acostumara (“ali está o povo do MST”; “lá estão os secundaristas do Pedro II”; “ali ficam os troskos do PSTU” etc), e nem mesmo as tradicionais formas de expressividade política associada a esses grupos. Eles estavam lá, mas a hegemonia não lhes pertencia. Finalmente, a mensagem política não era muito clara. Eu percebia e me identificava com os jovens que inseriam a luta contra o aumento da passagem num quadro mais geral de mercantilização da vida no Rio e o consequente desrespeito aos direitos dos setores populares na cidade (remoções, especulação imobiliária, violência policial etc). Entretanto, não era essa agenda dominante, se é que havia uma agenda dominante.

Ok, mas o que se pode analisar de tudo isso? Mesmo achando que ninguém sabe exatamente o que está ocorrendo, eu chutaria o seguinte:

1.     O movimento surgiu das lutas do Movimento Passe Livre (MPL), que foi responsável pelas únicas ações estudantis de massa nos últimos anos em capitais brasileiras. Entretanto, ele obviamente extrapolou o MPL e tornou-se um movimento de diversas multidões. Um dos fatores decisivos foi a violenta repressão policial, que juntou as pessoas numa vontade de afirmar o protesto democrático.
2.     O movimento surgiu apesar da grande imprensa. Não houve simpatia inicial nenhuma por parte de Veja, Folha, Globo e Estadão. Ao contrário, os jornais paulistas, em especial, buscaram criminalizar os protestos e desqualificar seus participantes. Agora, a cobertura virou, muito por conta da brutalidade policial e da evidência de que a hegemonia não é da esquerda organizada.
3.     O movimento é basicamente juvenil em sua base e em sua forma. A manifestação se valeu da convocação por redes, o que lhe permitiu atuar sem a mediação de instâncias clássicas (fóruns presenciais, negociação entre lideranças, articulações intensas de bastidores e negociação com os poderes instituídos). Além disso, há uma rejeição à hierarquia e aos mecanismos de organização de massas, valores classicamente juvenis, em especial, dessa juventude nascida na década de 1990.  
4.     O movimento não é propriamente “de esquerda” no sentido partidário do termo. O que o caracteriza é um sentido de impotência diante da política e do Estado que se traduziu numa vontade de potência, isto é: o barato era estar na rua de forma coletiva contra um ambiente institucional que é percebido como distante e/ou repressor. Era por isso que a interação com as ruas, os cânticos e as formas de se estar junto pareciam valer mais que a defesa de alguma agenda específica.

Beleza, mas o que vai acontecer? A verdade é que ninguém sabe. Por um lado, a leitura dos jornais de hoje já me convenceu que a grande imprensa vai tentar, de todo jeito, “enquadrar” cognitivamente essa vontade de potência na sua pauta, isto é: as manifestações estão sendo lidas como uma espécie de “Cansei!” com maior base social, espécie de brado cívico genérico. Por outro lado, há uma tarefa gigantesca para todos aqueles que acreditam na luta por direitos, por justiça social e por democracia. Trata-se da necessidade de dialogar com essas multidões e, por meio deste diálogo, potencializar um sentido político possível, que é o de fazer a crítica das contradições que assolam o projeto ora dominante no Brasil: desenvolvimentismo tecnocrático, desrespeito aos direitos de indígenas e outras minorias, desprezo pela agenda dos direitos civis e mercantilização da vida nas grandes metrópoles. Está claro que não se trata de “hegemonizar” o movimento, pois sua própria forma parece impedir qualquer tradução política via um aparato institucional ou partidário. A única estratégia possível é o diálogo, entendido como um procedimento aberto de aprendizado mútuo. Perder-se na multidão talvez seja um primeiro passo.

João Marcelo Maia
Sociólogo e professor do CPDOC/ FGV.