No dia 17 de
junho de 2013, eu me encontrava no IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da UFRJ) desde as 13:30. O motivo profissional era participar de uma
banca de mestrado entre 14 e 16 horas. Porém, sabendo da boa localização do
Instituto, que fica no coração do Centro do Rio, pretendia também sair da banca
e acompanhar as manifestações que iriam ocorrer naquele final de tarde. Meus
motivos pessoais eram dois: a) a curiosidade de ver pessoalmente os
participantes, suas palavras de ordem e seu repertório de ação coletiva; b) o
desejo de me juntar aos que protestavam contra a repressão policial que se
abatera sobre manifestações similares nos últimos dias.
Ao sair da banca
pouco depois das 16 horas, o que vi no pátio do IFCS? Havia vários jovens,
entre 18 e 25 anos, pintando faixas e cartazes, aparentemente sem uma
coordenação central. Vi garotos e garotas que visivelmente tinha alguma
experiência de militância política, pois vestiam camisas da campanha de Marcelo
Freixo à prefeitura do Rio e pintavam dizeres que ecoavam uma leitura mais “à
esquerda” do protesto. Uma grande faixa amarela dizia “Não é por centavos, mas
por direitos”. Ao mesmo tempo, via outros jovens com cartazes próprios, que
traduziam um sentimento difuso de indignação, e não uma pauta política mais
específica. Esses diziam coisas como “Verás que um filho teu não foge à luta”,
“#Vem pra rua” etc.
Do lado de fora
do IFCS, com o Largo de São Francisco já bem cheio, havia uma caixa de som com
um jovem falando ao microfone. Era um militante político com alguma
experiência, pois suas falas e músicas traduziam a visão dos jovens com alguma
socialização de esquerda. Na praça, eu via muitos cartazes particulares e
algumas bandeiras de partidos, basicamente do PSOL. Encontrei também militantes
mais velhos – digo, da minha geração -, boa parte deles vinculada ao PSOL ou
simpatizante.
Quando a
manifestação saiu do IFCS em direção à Candelária, percebia que os temas
principais das músicas eram a luta contra o aumento da passagem e a crítica aos
gastos com a Copa do Mundo. O governador Sérgio Cabral também era alvo
preferencial da garotada, provavelmente por conta da repressão policial
conduzida pela PM em eventos anteriores. Havia muitas bandeiras do Brasil,
gente com cara pintada de verde e amarelo, e juro que ouvi mais de uma vez o
chatíssimo coro de “Eu sou brasileiro/ com muito orgulho/ com muito amor”. Na
frente da manifestação, muitas bandeiras, em especial do PSTU e do PCB. Em
determinado momento, quando já estava na Rio Branco, ouvi um coro de alguns
manifestantes contra a presença dessas bandeiras na manifestação. Mas, até onde
acompanhei, as bandeiras continuaram.
Havia diversos
grupos políticos organizados além dos partidos à esquerda do PT. Vi gente do
movimento LGBT e uma bandeira do arco-íris. Vi também gente ligada à luta de
médicos e de enfermeiros contra a desativação do IASERJ. Por outro lado, vi
cartazes inimagináveis numa manifestação classicamente de “esquerda”, como um
que dizia “Por uma política monetária séria!!”
A manifestação
era difusa, com diferentes grupos ao longo dela, sem um carro de som que
coordenasse a massa ou discursos de lideranças que reiterassem uma agenda
comum. Os momentos de maior vibração dos manifestantes ocorreram quando estes
percebiam que papel picado era jogado do alto dos prédios, ou quando o povo que
trabalhava nos escritórios da Rio Branco piscava as luzes em sinal de apoio.
Nesses momentos, parecia-me que o ato de
estar na rua de forma coletiva era mais importante do que a própria
expressão de uma agenda política mais precisa.
Ao longo do
trajeto, encontrei alguns colegas de geração e outros mais velhos, a maioria
professores universitários. Vi também algumas figuras mais carimbadas da
política de esquerda do Rio. Todos, em geral, pareciam mais curiosos do que
propriamente entusiastas participantes. Afinal, por que eu e outros parecíamos
perdidos na multidão?
Em primeiro
lugar, havia um evidente viés geracional. Era uma manifestação de jovens entre
15 e 25 anos, em sua esmagadora maioria. Não que só houvesse esses jovens, mas
eles pareciam dar a cara da manifestação. Além disso, eu não conseguia
localizar claramente os grupos e movimentos sociais aos quais me acostumara
(“ali está o povo do MST”; “lá estão os secundaristas do Pedro II”; “ali ficam
os troskos do PSTU” etc), e nem mesmo as tradicionais formas de expressividade
política associada a esses grupos. Eles estavam lá, mas a hegemonia não lhes
pertencia. Finalmente, a mensagem política não era muito clara. Eu percebia e
me identificava com os jovens que inseriam a luta contra o aumento da passagem
num quadro mais geral de mercantilização da vida no Rio e o consequente
desrespeito aos direitos dos setores populares na cidade (remoções, especulação
imobiliária, violência policial etc). Entretanto, não era essa agenda
dominante, se é que havia uma agenda dominante.
Ok, mas o que se
pode analisar de tudo isso? Mesmo
achando que ninguém sabe exatamente o
que está ocorrendo, eu chutaria o seguinte:
1.
O movimento surgiu das lutas do Movimento Passe Livre
(MPL), que foi responsável pelas únicas ações estudantis de massa nos últimos
anos em capitais brasileiras. Entretanto, ele obviamente extrapolou o MPL e
tornou-se um movimento de diversas multidões.
Um dos fatores decisivos foi a violenta repressão policial, que juntou as
pessoas numa vontade de afirmar o protesto democrático.
2.
O movimento surgiu apesar
da grande imprensa. Não houve simpatia inicial nenhuma por parte de Veja,
Folha, Globo e Estadão. Ao contrário, os jornais paulistas, em especial,
buscaram criminalizar os protestos e desqualificar seus participantes. Agora, a
cobertura virou, muito por conta da brutalidade policial e da evidência de que
a hegemonia não é da esquerda organizada.
3.
O movimento é basicamente juvenil em sua base e em sua
forma. A manifestação se valeu da convocação por redes, o que lhe permitiu
atuar sem a mediação de instâncias clássicas (fóruns presenciais, negociação
entre lideranças, articulações intensas de bastidores e negociação com os
poderes instituídos). Além disso, há uma rejeição à hierarquia e aos mecanismos
de organização de massas, valores classicamente juvenis, em especial, dessa
juventude nascida na década de 1990.
4.
O movimento não é propriamente “de esquerda” no sentido
partidário do termo. O que o caracteriza é um sentido de impotência diante da
política e do Estado que se traduziu numa vontade de potência, isto é: o barato
era estar na rua de forma coletiva contra um ambiente institucional que é percebido
como distante e/ou repressor. Era por isso que a interação com as ruas, os
cânticos e as formas de se estar junto pareciam valer mais que a defesa de
alguma agenda específica.
Beleza, mas o
que vai acontecer? A verdade é que ninguém sabe. Por um lado, a leitura dos
jornais de hoje já me convenceu que a grande imprensa vai tentar, de todo
jeito, “enquadrar” cognitivamente essa vontade de potência na sua pauta, isto
é: as manifestações estão sendo lidas como uma espécie de “Cansei!” com maior
base social, espécie de brado cívico genérico. Por outro lado, há uma tarefa
gigantesca para todos aqueles que acreditam na luta por direitos, por justiça
social e por democracia. Trata-se da necessidade de dialogar com essas
multidões e, por meio deste diálogo, potencializar um sentido político
possível, que é o de fazer a crítica das contradições que assolam o projeto ora
dominante no Brasil: desenvolvimentismo tecnocrático, desrespeito aos direitos
de indígenas e outras minorias, desprezo pela agenda dos direitos civis e
mercantilização da vida nas grandes metrópoles. Está claro que não se trata de
“hegemonizar” o movimento, pois sua própria forma parece impedir qualquer
tradução política via um aparato institucional ou partidário. A única
estratégia possível é o diálogo, entendido como um procedimento aberto de
aprendizado mútuo. Perder-se na multidão talvez seja um primeiro passo.
João Marcelo
Maia
Sociólogo e
professor do CPDOC/ FGV.