quarta-feira, 3 de março de 2010

A Potência Humana


Os vizinhos ficaram surpresos quando souberam que tinham levado o respeitável senhor da rua 8. Eu ainda era criança quando isso aconteceu. Lembro que num fim de tarde o pai voltava da padaria da esquina com um saco de pães e leite, de pijamas, e uns homens o esperavam no portão de casa. Levaram meu pai.

Tudo isso por culpa de um homem. Para contar como foi talvez precise começar alguns anos antes, quando eu nem sabia que eu era gente. Sei que desde cedo aprendi o nome daquele homem pelo pai. Nunca houve um dia em que ele não falasse do tenente Montoya. Parece que depois chegou a capitão, acho. Mas na época do pai ele era tenente mesmo, e desde muito pequeno aprendi seu nome. Como meus irmãos maiores, eu também um dia me dei conta daquele nome: Montoya. O pai tinha impresso esse nome nas nossas cabeças e nós o acompanhávamos também em sua raiva. Aprendíamos a odiar o tenente Montoya. Era como se toda a raiva que ele sentia pelo tenente não coubesse nele. Então ele a espalhava pelo mundo e ia começando pelos seus filhos; como uma espécie de herança que se recebe em vida. Tudo aquilo parecia extremamente natural.

Quando eu era pequeno, não tinha amigos além dos meus dois irmãos. Vivíamos todos numa casa grande, num bairro simples, com minha mãe, que sempre foi doente, e minha avó. Naquela época criança não ia para escola como vai hoje e só fui conhecer escola aos sete anos, na mesma época em que vi o Montoya. Na minha rua só tinham garotos mais velhos, que brincavam com meus irmãos, Jorge e Roberto. Eles já haviam conhecido o tenente Montoya. Como eu, eles também alimentavam uma raiva destruidora pelo tenente. Todo esse ódio parecia normal. Era como se em todas as famílias todo mundo tivesse um tio, um primo de segundo grau, uma inspetora sanitária ou um farmacêutico rabugento ali, pronto para ser odiado por toda a casa. Era assim que eu via o Montoya. Como um elemento natural de uma família normal que, do mesmo modo como troca presentes no final do ano, tem seus rituais de ódio mais ou menos semelhantes aos nossos.

O pai levou meus irmãos para conhecer o tenente assim que eles completaram sete anos. No dia do meu aniversário o pai disse que nós iríamos ver o Montoya na próxima sexta-feira; que era para eu me preparar. À noite, antes de dormir, Jorge e Roberto, que tinham nove e onze anos, me contavam do tenente. Repetiam com certo orgulho as mesmas histórias que meu pai nos contava, como se elas tivessem se passado com eles. Eu pedia para eles me dizerem apenas como ele era, mas cada um dizia uma coisa. Jorge dizia que ele era alto, Roberto dizia que ele era forte, talvez gordo, não sabiam. Na verdade eles tinham ficado, cada um, com o seu Montoya particular na memória, que era um outro que não existia na realidade. Mas naquele tempo eu não sabia. Para mim o tenente era tudo aquilo aumentado, mais feio, mais sujo, mais mau; porém alguém que eu precisava conhecer de verdade. Eu era o único da família que nunca tinha visto o Montoya, a não ser numa foto, muito antiga, que todo mundo dizia que era muito diferente de como estava.

Era uma foto da época em que meu pai era da ativa, acho que nem conhecia de lei, ainda. Meu pai estava muito diferente também, mais magro, mais forte e tinha mais cabelo. Guardava essa foto na mesa de cabeceira, perto dos óculos, ao alcance das mãos. Pronta para ser pega a qualquer hora, como se fosse uma arma. Eu cansei de ver aquela foto desbotada e, por mais que meus irmãos dissessem que Montoya não era mais daquele jeito, não adiantava. Ele era igual ao homem da foto, só que mais feio, mais sujo e mais mau.

Na sexta-feira, depois do café da manhã, o pai mandou que eu me aprontasse. Pensei que íamos a um quartel. Pensei que eu ia finalmente ver o Montoya na frente de um pelotão, gritando para os soldados com aquela voz de bicho. Mas, não. O pai me colocou no carro e fomos para um lugar afastado. Andamos muita coisa, quase saímos da cidade. Depois de uma hora chegamos. Eu ia dormindo, já. Em volta não havia sinal algum de quartel. Apenas uma praça imunda e uns velhos mendigos mijados que davam milho duro aos pombos, por ordem de um outro atarracado e perneta.

Meu pai reduziu a marcha e foi contornando a praça, devagar. Quando passamos pelos mendigos meu pai parou o carro e mandou eu descer. Fomos até um bar na esquina de onde se podia ver toda a praça e os homens. Meu pai pediu uma água tônica para ele e um refrigerante para mim, sem me perguntar o que eu queria. Então nos sentamos à uma mesa meio bamba e ficamos, de longe, bebendo e olhando os mendigos.

Eu já havia tomado todo meu refrigerante, mas não tinha coragem de dizer nada. Meu pai calado, olhando para os velhos sem tocar na água tônica. Depois de uma meia hora nisso eu já estava arrependido. Não teria droga nenhuma de Montoya na sexta-feira. Foi então que meu pai me disse, sem deixar de olhar para os mendigos:

"Tá vendo aqueles homens ali, filho?"

"Tô sim, pai."

"Tá vendo aquele mais alto ali?, aquele que manda os outros jogarem o milho?"

"Tô."

"Olha como ele tira o dinheiro do bolso e obriga o outro ir até o pipoqueiro, do outro lado da praça, comprar milho para os outros distribuírem pros pombos."

"Tô vendo, pai."

"Esse velho não muda... Vai morrer fodido querendo pisar nos outros."

Só então entendi que o velho mendigo era o Montoya.

"Desde que o Jorge viu o tenente, faz dois anos é isso aí. Não deixo ele escapar. Teve um problema e foi expulso do exército. Trabalhou como balconista numa loja de ferragens, foi ascensorista, se meteu a beber, perdeu a perna num acidente e é isso, acabou. Acabou o tenente Montoya."

O pai não falava para mim. Tentava se convencer que a vingança estava feita, pela vida.

E eu, sem ligar muito para o que o pai dizia, tornei a olhar para a figura do velho decrépito, a pessoa que, aos sete anos, eu odiava mais do que a qualquer um que eu iria odiar por toda minha vida. Mas naquela hora, eu, que havia preparado minha raiva infantil por toda a semana, não pude usá-la. Só pude sentir pena daquilo que havia se transformado o tenente. Voltamos para casa em silêncio.

À medida que fomos crescendo, eu e meus irmãos passamos a não dar mais tanta importância ao Montoya. Só que o pai não. A história desses dois já tinha mais de vinte anos, mas o velho não abandonava o passado. Fomos crescendo e vendo que tudo aquilo não era sadio. Odiar alguém por tanto tempo assim... O sujeito já estava nas últimas, tinha enlouquecido, morava na rua. Pronto, a vida tinha resolvido.

Para o pai, não. Um juiz está habituado a decidir o destino das pessoas. Não era fácil para o pai aceitar que a justiça, nesse caso, estivesse longe dele. A Justiça nunca podia fazer o que o pai desejava que fizesse. Ele tentava se convencer disso, mas não adiantava. Acho que ele odiava mais o tenente porque não podia fazer nada contra ele. Porque tinha que se contentar com os resultados que tinham desembocado da vida.

Todas as sextas-feiras o pai saía depois do café e voltava só à noite. Sempre foi assim, mesmo depois que virou juiz. Depois que saímos naquela sexta-feira da semana do meu aniversário eu entendi o porquê. Ele vigiava os passos do Montoya. Fazia questão de acompanhar sua degradação. Um dia, quando o pai chegava de uma de suas incursões de sexta-feira a um subúrbio da cidade, tomei coragem e perguntei:

"Pai, o senhor alguma vez já falou com o tenente depois que saiu do exército?"

O pai ficou pálido como se eu tivesse contado sobre a morte de seus filhos. Fechou a cara, passou pela sala marchando sobre o assoalho e foi se trancar no quarto. Jorge e Roberto, que estavam vendo televisão na hora, saíram de casa e me deixaram sozinho. A TV ligada. A sala vazia.


Eu posso entender que ninguém que passa pelas humilhações por que passou o pai fica igual. Quando a mãe ainda era viva, ela e a avó protegiam a gente quando o pai tinha ataques de raiva e nos batia tanto que parecia que ia nos matar.

Mas o pai nunca foi previsível. Nunca reagia da mesma maneira. Não importava se a gente tinha feito arte ou mesmo da vez em que eu e o Roberto roubamos coisa lá de casa pra vender e arrumarmos dinheiro pro cinema. Nem dessa vez que era coisa muito séria o pai, que abominava roubo, reagiu igual e nos bateu. Ele levou a gente pro quintal e fez a gente ficar lá, procurando formigueiro, e só voltar depois que a gente tivesse matado a rainha.

O Roberto, que sempre foi esperto para essas coisas, sabia um monte de truques e num instante a gente tinha achado uns três formigueiros, matado as formigas com água quente e achado a rainha de um deles. Mas tivemos que ficar lá no quintal fazendo hora, porque não demoramos tanto e o pai ainda devia estar de cabeça quente. Eu lembro que essa foi a vez que eu falei do Montoya para o meu irmão sem falar dele, mas do pai. Eu já tinha percebido que por mais que o Montoya tivesse esfregado a cara do pai na merda, que tivesse obrigado o pai a beber sangue de galinha viva, batido muito nele e tivesse posto ele na cadeia sem comida uma porção de vezes, aquilo tudo devia ser pouco para o que o pai sentia. O pai tinha ficado meio amalucado. Devia ter alguma coisa muito mais séria que o pai não contava. Foi nesse dia que eu descobri o que era. O Roberto me contou.


* * *


Quando o pai largou o exército nós nem éramos nascidos. Ele sempre dizia que era para a gente estudar bastante, não ficar de vadiagem pela rua que isso não ia trazer nada de bom para nós. O pai estudou muito. Ele trabalhava de dia e estudava para ser advogado, à noite. Naquela época, todo mundo que queria ser alguém na vida estudava para ser advogado. Mas o pai gostava mesmo das leis. Sempre gostou. Isso todo mundo dizia porque se notava. Quando o Roberto nasceu o pai já trabalhava há alguns anos num fórum, eu acho. Demorou muitos anos até que ele virasse juiz, que sempre foi o seu maior sonho. Foi uma festa danada lá em casa no dia em que ele recebeu a notícia. A família ficou muito feliz. O pai já não era nenhum moleque e, depois de tudo que já tinha passado na vida, ele merecia. A única coisa que eu lembro desse dia tão importante para a nossa família é que o pai usava uma roupona preta, igual ao pegnoir da mãe, e levantava a gente no colo, feliz da vida, falando alto, numa alegria medonha. Para nós, além da alegria do pai, ia ser bom porque ele tinha prometido uma bicicleta nova para cada um.

A vizinhança pensou que depois disso nós íamos mudar para uma casa maior, num bairro melhor, mas não. Continuamos a morar onde até hoje a gente mora. Melhoramos a casa, sim, mas o pai era homem simples, não ligava para dinheiro. O pai sempre quis ser juiz não por prestígio ou para melhorarmos de vida, mas porque ia poder decidir também. Na época eu não via nada disso, mas hoje eu sei que o pai tinha uma vontade anormal de fazer justiça, de consertar as coisas erradas. Sobre tudo isso eu faço um esforço danado, mas quase não lembro. Lembro pela memória dos outros como se fosse a minha. E por essa mistura de memórias eu sentia que a nossa vida ia ser muito feliz daí para frente. O pai tinha conseguido o que queria, ia bater menos na gente, que ia ter, cada um, uma bicicleta novinha.

Mas depois que o pai virou juiz a gente passou a ver ele muito pouco, menos ainda do que antes. Eu pensava que ia ser o contrário, mas ele gostava tanto e se dedicava tanto que a gente quase não o via. Quando ele não estava no tribunal ficava num quartinho que tinha mandado construir lá atrás, lendo uma porção de livros e pastas que ele tinha juntado. E ai de quem o incomodasse. A gente chegava da escola, ia lá pedir a bênção e não ficava azucrinando, não; íamos para a rua brincar para não perturbar o trabalho do pai. Para mim aquilo era estranho, mas a mãe dizia que era trabalho, sim. A gente aceitava porque sabia que era melhor que fosse assim. Pegávamos nossas bicicletas e rodávamos pelo bairro, jogávamos futebol ou gude com os garotos da rua de baixo. Às vezes dava briga e o nosso maior medo era que o pai aparecesse. O Jorge, que era meu irmão mais brigão, não aceitava desaforo e a gente, que afinal era irmão, tinha que brigar junto. Eu detestava que isso acontecesse não porque tinha medo de brigar, mas porque o pai não deixava. Dizia que brigar na rua era coisa muito feia, coisa de moleque vagabundo que não tem o que fazer. Nesse caso a sentença era sempre muito ruim. E coitado de quem fosse pego escondendo que tinha brigado... mas mesmo assim a gente brigava. E acabava, quase sempre, apanhando na rua e em casa.

Uma coisa que eu nunca pude entender, até o dia em que o Roberto me contou lá no quintal o segredo do pai e do Montoya, era porque o pai não fazia nada para colocar o tenente na cadeia, já que ele era juiz. É claro que eu pensava que o juiz era uma espécie de super-herói da lei, que podia fazer tudo. Afinal, meu pai era um juiz. Meu pai era tudo para nós. Mas depois daquele dia eu entendi que ainda que ele quisesse fazer alguma coisa, jamais poderia. Estava acima de sua potência, de seus poderes de magistrado. Só hoje, depois de tantos anos, tendo o pai já morrido e estando eu já velho, tendo também meus filhos que o pai nunca conheceu, posso compreender o tamanho de seu dilema. Eu sei da responsabilidade de um pai e da pressão que ele se obriga para ser um exemplo perfeito. Essa era, muito além do tenente Montoya, sua verdadeira obsessão. Por isso sua sede de justiça, não a justiça de Montoya apenas, mas a forma como o pai se dedicava aos seus processos, o modo como devorava livros, estudava-os. Essa era sua maneira de fazer vingança, de provar para nós e para ele próprio que ele não era um fraco.

Mas quando o Roberto me contou que o pai havia feito aquilo eu fechei a mão e apliquei um belo murro em seu nariz. Acertei-o com toda a força que tinha e lembro bem que na mesma hora me deu pena. O Roberto não fez nada. Ficou me olhando com os olhos cheios de lágrimas. Eu ainda xinguei o Roberto de mentiroso, mas eu sabia que só podia ser verdade. Então, quando me acalmei, ele me contou tudo.

Uma noite, há coisa de um ano disso, quando ele já tinha uns catorze e a casa toda já devia estar dormindo, o Roberto ouviu um barulho e, curioso como era, resolveu levantar para saber o que era. Era um barulho esquisito, misto de vozes e gemidos, uma coisa muito diferente. Vinha do quarto de nossos pais. Meu irmão foi chegando, chegando perto da porta e, pelo buraco da fechadura, olhou lá para dentro. O pai estava deitado, no colo da mãe, tentando chorar baixo. A mãe passava a mão em sua cabeça grisalha e dizia para ele esquecer, que era passado, que não tinha sido culpa sua. Mas o pai não se conformava. Dizia que já era, que não tinha jeito de apagar aquela desgraça de sua vida. O Roberto ficou assustado. Pensou em voltar para a cama antes que aquilo se complicasse mais. Toda família tem seus segredos. Todo mundo alimenta um gosto bruto por desvendá-los, como se a verdade fosse algo que sempre devesse prevalecer. Mas estar diante da verdade pode ser uma experiência assustadora.

E Roberto ficou lá. Tampouco tinha forças para voltar para a cama. E ouviu o que faltava, afinal. O Montoya havia trazido um rapaz. O tenente colocou a arma na mão do jovem cabo e, da forma perversa com que dominava o pai, fez com que puxasse o gatilho. Pronto. Havia provado ao Montoya que tinha coragem. Talvez acreditasse que o tenente não o perturbaria mais, que não iria persegui-lo pessoalmente como fizera por mais de dois anos. Estava muito enganado. Montoya o seguiria pelo resto da vida.

A mãe morreu alguns meses depois que soube do segredo. Ela vivia doente há alguns anos. Foi muito triste. O pai pensou que ela tivesse levado seu segredo embora, mas todos nós, exceto minha avó, viríamos a saber. A casa ficou muito triste, mas a tristeza que antes era da morte da mãe logo passou a ser a da culpa do pai; que nós compartilhávamos agora, sem que ele soubesse. Isso não ajudou em nada e eu acredito que foi a partir daí que o velho juiz começou a pensar em agir. O que não está nos autos, o pai nos contou.

Numa daquelas sextas-feiras, o pai pegou o carro e, como de costume, foi visitar o Montoya, que continuava na praça, enlouquecido e autoritário. Provavelmente não era a mesma praça nem os mesmos subalternos, mas isso não faz a menor diferença. O pai chegou com seu carro preto, estacionou-o onde pudesse ver bem o tenente decrépito e ficou lá dentro, apenas observando-o xingar um menino franzino, como aquele que ele, Montoya, havia matado. Ficou ali uns vinte minutos, olhando as humilhações do tenente aleijado. Ninguém fazia nada pelo garoto.

Fazia calor. O pai saiu do carro e se aproximou. O rapaz se atrapalhava para controlar os latidos dos cães sarnentos. Montoya ria, batendo em suas costas com um cabo de vassoura que fazia as vezes de muleta. Quando o tenente dispensou seus soldadinhos, o pai foi até ele. Foi a primeira vez em que os dois se falaram desde que meu pai deixou o exército.

"Tenente Montoya?", perguntou como se não soubesse.

"Às suas ordens", respondeu surpreso, virando-se para o pai.

Quando Montoya se colocou à sua frente, tudo o que o pai viu foi sujeira. Particularmente a sujeira que descia de seu olho esquerdo, como uma espécie de corrimento. Era repulsivo. O pai pensou em desistir e voltar para a casa. Talvez tivesse ido longe demais. Olhou para baixo. Não estava lá a perna direita que tantas vezes pisou suas costelas diante da tropa. Pensou em voltar de novo, mas resistiu:

"O senhor sabe quem eu sou?"

E então, olhando também o pai nos olhos, com o mesmo olhar de potência, falou como se tempo algum houvesse passado:

"Você acha que eu esqueço merda quando vejo?"

"Já faz muito tempo."

"Mas para mim você vai ser sempre o mesmo fraco."

"Velho filho de puta!"

Montoya riu e disse que o pai sabia obedecer.

"Eu posso fazer."

Montoya não respondeu. Olhou pro pai com desprezo como se ele fosse o mendigo e Montoya o juiz, capaz de julgar sobre seu passado e de sentenciá-lo se quisesse.

"Você matou aquele rapaz, tenente."

Montoya riu.

"Não foi da minha arma que o tiro saiu."

"Eu matei porque você mandou."

"Fraco."

"Eu matei porque você me obrigou."

"Estúpido."

"Você matou o garoto, Montoya. Você matou", gritou o pai.

"Você sabia o que ia acontecer se puxasse o gatilho. Você foi fraco. Sempre foi. Eu fiz aquilo para testar se era verdade. Você nem resistiu. Puxou o gatilho e matou aquele vagabundo."

"Você me obrigou a matar, Montoya. Você não ia me perdoar se eu não puxasse o gatilho."

"Não te perdôo por ter puxado, idiota. Foi você quem matou e você não pode me acusar disso. Não pode me culpar por uma coisa que só você fez."

"Eu não mereço essa culpa."

"Não pode me culpar porque você é um assassino. Não me perturbe mais com essa história. Você já devia ter esquecido. Isso faz parte do seu passado. Não tenho nada com isso."

Não havia nada que o pai pudesse fazer.

"Não tem nada com isso? Dessa vez você vai ter."

Tomou da mão do tenente sua muleta e o Montoya caiu, surpreendido. Os outros mendigos vieram acudi-lo, mas o pai gritou com eles, afastando-os. O pai podia ser violento se quisesse. Foi treinado para isso. Então olhou para o velho no chão. O olho esquerdo continuava a pôr para fora aquela secreção. Na boca um sorriso banguela assustado, mas ameaçador. O pai bateu uma, duas vezes naquela cabeça. As outras pancadas ele não se lembra. Apenas bateu até que o cabo quebrasse e continuou batendo, com o cabo quebrado, até que o detiveram. Montoya estava no chão. Ainda vivo. Na boca, ainda o mesmo sorriso, cínico e silencioso, que o xingava tacitamente de fraco.

O pai largou o cabo de vassoura no chão, entrou no carro e foi para casa como se nada tivesse acontecido. Demoraram só dois dias até que o encontraram. Foram os dias mais felizes de nossas vidas.

Juliano
2004-01-19 11:07:43

Sapatos Bicolores


Ribamar acordou chupando a saliva que fugia de sua boca aproveitando o sono calmo que lhe proporcionava o balançar do ônibus. Olhou para os lados e chocalhou a cabeça para afastar o atordoamento. Limpou o rosto com a manga da camisa enquanto tentava descobrir onde estava. Benfica. Levantou dando sinal e cambaleou até a porta. Ouviu o chiar da pressão enquanto a porta se abria. O ônibus ia parando quando Ribamar agradeceu ao motorista e desceu.

Há nove meses procurava emprego. Se acostumou com a idéia de que nunca mais trabalharia. Fazia biscates aqui e ali só para garantir a existência mal levada e tentar sonhar com seu próprio negócio, talvez um bar no Andaraí. Servia qualquer coisa, contanto que fosse sua própria.

Ribamar jamais teve algo que fosse só seu; a casa era do pai da mulher. Morava no Caricó naqueles tempos e era visto como um idiota por toda vizinhança. Não tinha amigos. Trabalhou por muito tempo no almoxarifado de uma firma no Caju e até sabia que o amante de sua mulher havia lhe arrumado aquele emprego, mas fingia não se importar. E fingindo Ribamar levou sua vida até que foi trocando o emprego pela cachaça e sua mulher o trocou pelo amante.

Ficou feliz em deixar de ser motivo de chacota e passar à categoria de indigente. Sem casa, teto ou família, Ribamar apreciou por muito tempo a solidão. Queimou seu fundo de garantia na Cidade Nova junto às meninas da rua Pinto de Azevedo. Teve vida de solteiro e felicidade garantida enquanto o dinheiro durou. Duas semanas de festas. Se amasiou com Tereza, que era uma de suas meninas, e tinha a intenção de ser seu homem quando arrumasse sua vida.

Não sentia nada por ela, possivelmente alguma ternura por alguém que auxiliava tanta gente. Putas são as criaturas mais dignas desse mundo. A admiração que tinha por elas acabou junto com seu dinheiro. Eu até gosto de você, Riba, mas não dá pra gente ficar junto e passar fome. A gente pode continuar se vendo, mas aqui não dá pra você ficar. Ele entendeu que sem o dinheiro não era mais que uma massa gorda e mal formada.

Carregava para cima e para baixo um pacote sujo com suas três mudas de roupa e seu maior bem que eram os sapatos bicolores. Ribamar costumava colocá-los para impressionar os travestis da Lapa e as mulheres da zona nos seus últimos tempos de solteiro. Sentia-se um sujeito importante em cima deles. Esquecia a cara feia de nariz grande e achatado, os olhos estrábicos e a barriga imensa quando os calçava. Não lembrava ser um homem que fedia a azedo e da boca desdentada. Esquecia que era um excremento e que ninguém se importava com ele. Os sapatos lhe devolviam a dignidade que nunca teve, eram um instrumento de mudança da sua verdade. Os bicolores lhe conferiam personalidade e determinação. Não era um joão ninguém, mas um homem que mesmo sem estudo podia ter algo para si. Com aqueles sapatos ultrapassados já não se sentia nem corno nem humilhado.

O pacote, todo amassado, se acomodava em sua axila que a muitos dias não conhecia água. Na mão um jornal amarrotado com endereços circulados. Caminhou pela Suburbana até alcançar o número 834 da Prefeito Olimpio de Melo. Era um galpão grande com um portão de aço. Tocou a campainha e esperou que uma porta pequena do portão se abrisse. É daqui que estão pedindo um auxiliar de almoxarifado? O guarda não respondeu, apontou para o interior à esquerda onde já havia uma fila com umas vinte pessoas. Abriu o pacote, colocou os bicolores enquanto esperava na fila. Não foi aceito. Não tinha endereço nem referências. Acharam que ele era ex-presidiário. Bêbado não tem referência, pensou sem dizer.

Ribamar arrastou seu corpo sujo e fedorento durante todo o dia por cinco empresas. Foi andando quase até o Méier sem arranjar nada. Só fome e muito ódio do mundo. Cansou de trocar os sapatos e viu que eles já não funcionavam. Sentia o peso do fracasso por cada centímetro de seu corpo destruído pela decepção. O cheiro de seu suor incomodava até a ele próprio. Rodelas sebosas se formavam na camisa encardida de gola e punhos puídos, a calça remendada tinha o traseiro sujo da imundície do mundo que dizia não haver vagas. Os dentes podres, a barba encalacrada e o pescoço coberto de granfanha eram a vingança biológia que cultivava como resposta aos outros. Asco era a única forma de vingança que lhe restava. Já haviam lhe tomado tudo agora.

Seis e quinze. Ainda fazia calor. Ribamar entrou num bar na Vinte e Quatro de Maio pediu uma branquinha com o dinheiro que economizou por todo o dia caminhando, viu sua imagem num espelho e sentiu pena de si. Havia um gosto amargo na boca. Puxou um catarro e despejou-o no chão. Ei idiota, você faz isso em casa? Virou num só gole e se retirou do bar. Circulou pelo bairro já que não tinha para onde ir. Quis ser amado, mas já não podia pagar. Vagou errante até o Engenho de Dentro. Dez e vinte.

Ribamar avistou uma garotinha albina quando ia cruzar a Souza Aguiar com a Bueno de Paiva. Pensou como seria ter uma filhinha albina e achou graça. A menina olhou assustada para o monte de estrume Ribamar. Olhou com satisfação e imaginou como seria possuir uma mulher como aquela. A menina seguiu seu caminho apertando o passo enquanto os pensamentos do homem se fixavam na mulherzinha de onze anos. Começou a segui-la pelas ruas mal iluminadas pensando que gostaria de ser feliz. Excitou-se com a idéia de tomá-la para si acariciar seus cabelos brancos e beijar sua pele clara como açúcar.

Encostou-se num poste e abriu o pacote. Tirou o velho par com furos na sola e colocou os bicolores. A albina estava longe, por certo, mas já não andava tão depressa. Deixou o pacote no chão e percorreu a rua escura com cuidado para não sujar ou arranhar os bicolores. Sentia-se homem o bastante para possuir qualquer mulher. Não teve dificuldade para alcançar a garotinha. Abraçou-a com força se assustando com os gritos da menina. Excitava-o ver o contraste de suas peles. A limpeza, a higiene, o perfume daquela mulher.

Levou-a para um canto ainda mais escuro e calou-a com um beijo. Tocou as feridas de sua boca no pescoço da menina que chorava e pedia para que parasse com desespero inconformado. Rasgou sua blusa e alisou a barriga e os peitinhos que começavam a nascer. A albina derramava suas lágrimas e fechava os olhos fugindo de Ribamar. Levantou sua saia, desceu a calcinha e a desvirginou com o dedo sujo. Abriu a braguilha e a penetrou com todo seu amor. A garotinha chorava um gemido soluçado enquanto cantava baixinho um hino religioso. O êxtase foi rápido. Ele estava satisfeito. Não pagou. Puxou o fecho da calça e olhou com estranheza a menininha que lhe havia recusado. Se afastou para a luz fraca. Os bicolores brilharam novamente. Ribamar sorriu. A albina não se mexia, movia somente os olhos e chorava com a garganta sem fazer nenhum barulho.

Voltou até o poste e pegou o pacote do chão. O mundo não era tão mau assim.

Juliano.
2004-03-19 11:09:23