quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Perdido na Multidão: notas sobre o 17 de junho




No dia 17 de junho de 2013, eu me encontrava no IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ) desde as 13:30. O motivo profissional era participar de uma banca de mestrado entre 14 e 16 horas. Porém, sabendo da boa localização do Instituto, que fica no coração do Centro do Rio, pretendia também sair da banca e acompanhar as manifestações que iriam ocorrer naquele final de tarde. Meus motivos pessoais eram dois: a) a curiosidade de ver pessoalmente os participantes, suas palavras de ordem e seu repertório de ação coletiva; b) o desejo de me juntar aos que protestavam contra a repressão policial que se abatera sobre manifestações similares nos últimos dias.

Ao sair da banca pouco depois das 16 horas, o que vi no pátio do IFCS? Havia vários jovens, entre 18 e 25 anos, pintando faixas e cartazes, aparentemente sem uma coordenação central. Vi garotos e garotas que visivelmente tinha alguma experiência de militância política, pois vestiam camisas da campanha de Marcelo Freixo à prefeitura do Rio e pintavam dizeres que ecoavam uma leitura mais “à esquerda” do protesto. Uma grande faixa amarela dizia “Não é por centavos, mas por direitos”. Ao mesmo tempo, via outros jovens com cartazes próprios, que traduziam um sentimento difuso de indignação, e não uma pauta política mais específica. Esses diziam coisas como “Verás que um filho teu não foge à luta”, “#Vem pra rua” etc.

Do lado de fora do IFCS, com o Largo de São Francisco já bem cheio, havia uma caixa de som com um jovem falando ao microfone. Era um militante político com alguma experiência, pois suas falas e músicas traduziam a visão dos jovens com alguma socialização de esquerda. Na praça, eu via muitos cartazes particulares e algumas bandeiras de partidos, basicamente do PSOL. Encontrei também militantes mais velhos – digo, da minha geração -, boa parte deles vinculada ao PSOL ou simpatizante.

Quando a manifestação saiu do IFCS em direção à Candelária, percebia que os temas principais das músicas eram a luta contra o aumento da passagem e a crítica aos gastos com a Copa do Mundo. O governador Sérgio Cabral também era alvo preferencial da garotada, provavelmente por conta da repressão policial conduzida pela PM em eventos anteriores. Havia muitas bandeiras do Brasil, gente com cara pintada de verde e amarelo, e juro que ouvi mais de uma vez o chatíssimo coro de “Eu sou brasileiro/ com muito orgulho/ com muito amor”. Na frente da manifestação, muitas bandeiras, em especial do PSTU e do PCB. Em determinado momento, quando já estava na Rio Branco, ouvi um coro de alguns manifestantes contra a presença dessas bandeiras na manifestação. Mas, até onde acompanhei, as bandeiras continuaram.

Havia diversos grupos políticos organizados além dos partidos à esquerda do PT. Vi gente do movimento LGBT e uma bandeira do arco-íris. Vi também gente ligada à luta de médicos e de enfermeiros contra a desativação do IASERJ. Por outro lado, vi cartazes inimagináveis numa manifestação classicamente de “esquerda”, como um que dizia “Por uma política monetária séria!!”

A manifestação era difusa, com diferentes grupos ao longo dela, sem um carro de som que coordenasse a massa ou discursos de lideranças que reiterassem uma agenda comum. Os momentos de maior vibração dos manifestantes ocorreram quando estes percebiam que papel picado era jogado do alto dos prédios, ou quando o povo que trabalhava nos escritórios da Rio Branco piscava as luzes em sinal de apoio. Nesses momentos, parecia-me que o ato de estar na rua de forma coletiva era mais importante do que a própria expressão de uma agenda política mais precisa.

Ao longo do trajeto, encontrei alguns colegas de geração e outros mais velhos, a maioria professores universitários. Vi também algumas figuras mais carimbadas da política de esquerda do Rio. Todos, em geral, pareciam mais curiosos do que propriamente entusiastas participantes. Afinal, por que eu e outros parecíamos perdidos na multidão?

Em primeiro lugar, havia um evidente viés geracional. Era uma manifestação de jovens entre 15 e 25 anos, em sua esmagadora maioria. Não que só houvesse esses jovens, mas eles pareciam dar a cara da manifestação. Além disso, eu não conseguia localizar claramente os grupos e movimentos sociais aos quais me acostumara (“ali está o povo do MST”; “lá estão os secundaristas do Pedro II”; “ali ficam os troskos do PSTU” etc), e nem mesmo as tradicionais formas de expressividade política associada a esses grupos. Eles estavam lá, mas a hegemonia não lhes pertencia. Finalmente, a mensagem política não era muito clara. Eu percebia e me identificava com os jovens que inseriam a luta contra o aumento da passagem num quadro mais geral de mercantilização da vida no Rio e o consequente desrespeito aos direitos dos setores populares na cidade (remoções, especulação imobiliária, violência policial etc). Entretanto, não era essa agenda dominante, se é que havia uma agenda dominante.

Ok, mas o que se pode analisar de tudo isso? Mesmo achando que ninguém sabe exatamente o que está ocorrendo, eu chutaria o seguinte:

1.     O movimento surgiu das lutas do Movimento Passe Livre (MPL), que foi responsável pelas únicas ações estudantis de massa nos últimos anos em capitais brasileiras. Entretanto, ele obviamente extrapolou o MPL e tornou-se um movimento de diversas multidões. Um dos fatores decisivos foi a violenta repressão policial, que juntou as pessoas numa vontade de afirmar o protesto democrático.
2.     O movimento surgiu apesar da grande imprensa. Não houve simpatia inicial nenhuma por parte de Veja, Folha, Globo e Estadão. Ao contrário, os jornais paulistas, em especial, buscaram criminalizar os protestos e desqualificar seus participantes. Agora, a cobertura virou, muito por conta da brutalidade policial e da evidência de que a hegemonia não é da esquerda organizada.
3.     O movimento é basicamente juvenil em sua base e em sua forma. A manifestação se valeu da convocação por redes, o que lhe permitiu atuar sem a mediação de instâncias clássicas (fóruns presenciais, negociação entre lideranças, articulações intensas de bastidores e negociação com os poderes instituídos). Além disso, há uma rejeição à hierarquia e aos mecanismos de organização de massas, valores classicamente juvenis, em especial, dessa juventude nascida na década de 1990.  
4.     O movimento não é propriamente “de esquerda” no sentido partidário do termo. O que o caracteriza é um sentido de impotência diante da política e do Estado que se traduziu numa vontade de potência, isto é: o barato era estar na rua de forma coletiva contra um ambiente institucional que é percebido como distante e/ou repressor. Era por isso que a interação com as ruas, os cânticos e as formas de se estar junto pareciam valer mais que a defesa de alguma agenda específica.

Beleza, mas o que vai acontecer? A verdade é que ninguém sabe. Por um lado, a leitura dos jornais de hoje já me convenceu que a grande imprensa vai tentar, de todo jeito, “enquadrar” cognitivamente essa vontade de potência na sua pauta, isto é: as manifestações estão sendo lidas como uma espécie de “Cansei!” com maior base social, espécie de brado cívico genérico. Por outro lado, há uma tarefa gigantesca para todos aqueles que acreditam na luta por direitos, por justiça social e por democracia. Trata-se da necessidade de dialogar com essas multidões e, por meio deste diálogo, potencializar um sentido político possível, que é o de fazer a crítica das contradições que assolam o projeto ora dominante no Brasil: desenvolvimentismo tecnocrático, desrespeito aos direitos de indígenas e outras minorias, desprezo pela agenda dos direitos civis e mercantilização da vida nas grandes metrópoles. Está claro que não se trata de “hegemonizar” o movimento, pois sua própria forma parece impedir qualquer tradução política via um aparato institucional ou partidário. A única estratégia possível é o diálogo, entendido como um procedimento aberto de aprendizado mútuo. Perder-se na multidão talvez seja um primeiro passo.

João Marcelo Maia
Sociólogo e professor do CPDOC/ FGV.     
   

sábado, 29 de janeiro de 2011

A farsa se repete como tragédia




(...) nós mesmos temos votado inúmeras leis de amparo, de proteção a vítimas de enchentes, ocorridas notadamente em Minas Gerais e no estado do Rio de janeiro. Ao governo competia evitar que esses fatos ocorressem periodicamente, já que essas trombas d’água caem exatamente nas encostas das montanhas. Naqueles mesmos locais, várias outras mortes causadas por enchentes e soterramentos se repetirão periodicamente enquanto não forem removidas as causas; pelo menos que o governo condenasse tais regiões, não permitindo habitação de lavradores, etc.
Que faz o governo? Manda dinheiro para socorrer as vítimas, estas constroem casas no mesmo local e, anos depois, vêm as enchentes que as danificam. Voltam essas vítimas à Câmara para pedir amparo e assistência. Como no Nordeste, essas zonas deviam também ser condenadas pelo governo até que fossem suficientemente fertilizadas, arborizadas e melhoradas as condições de represagem da água, a fim de se tornarem núcleos úteis ao progresso do país...”



Discurso de um parlamentar na Câmara Federal, maio de 1951.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O homem da capa preta

Tirando do Baú - programa do Canal Brasil sobre o filme "O homem da capa preta", de Sérgio Rezende - 1986.


Primeira parte




Segunda parte

terça-feira, 18 de maio de 2010

COLETIVO

Vídeo produzido pelos alunos do Centro Integrado de Educação Pública Marco Polo - Três Rios, RJ e realizado durante a Oficina Vídeo Interaticidade do Programa Cinema Para Todos 2010.

quarta-feira, 3 de março de 2010

A Potência Humana


Os vizinhos ficaram surpresos quando souberam que tinham levado o respeitável senhor da rua 8. Eu ainda era criança quando isso aconteceu. Lembro que num fim de tarde o pai voltava da padaria da esquina com um saco de pães e leite, de pijamas, e uns homens o esperavam no portão de casa. Levaram meu pai.

Tudo isso por culpa de um homem. Para contar como foi talvez precise começar alguns anos antes, quando eu nem sabia que eu era gente. Sei que desde cedo aprendi o nome daquele homem pelo pai. Nunca houve um dia em que ele não falasse do tenente Montoya. Parece que depois chegou a capitão, acho. Mas na época do pai ele era tenente mesmo, e desde muito pequeno aprendi seu nome. Como meus irmãos maiores, eu também um dia me dei conta daquele nome: Montoya. O pai tinha impresso esse nome nas nossas cabeças e nós o acompanhávamos também em sua raiva. Aprendíamos a odiar o tenente Montoya. Era como se toda a raiva que ele sentia pelo tenente não coubesse nele. Então ele a espalhava pelo mundo e ia começando pelos seus filhos; como uma espécie de herança que se recebe em vida. Tudo aquilo parecia extremamente natural.

Quando eu era pequeno, não tinha amigos além dos meus dois irmãos. Vivíamos todos numa casa grande, num bairro simples, com minha mãe, que sempre foi doente, e minha avó. Naquela época criança não ia para escola como vai hoje e só fui conhecer escola aos sete anos, na mesma época em que vi o Montoya. Na minha rua só tinham garotos mais velhos, que brincavam com meus irmãos, Jorge e Roberto. Eles já haviam conhecido o tenente Montoya. Como eu, eles também alimentavam uma raiva destruidora pelo tenente. Todo esse ódio parecia normal. Era como se em todas as famílias todo mundo tivesse um tio, um primo de segundo grau, uma inspetora sanitária ou um farmacêutico rabugento ali, pronto para ser odiado por toda a casa. Era assim que eu via o Montoya. Como um elemento natural de uma família normal que, do mesmo modo como troca presentes no final do ano, tem seus rituais de ódio mais ou menos semelhantes aos nossos.

O pai levou meus irmãos para conhecer o tenente assim que eles completaram sete anos. No dia do meu aniversário o pai disse que nós iríamos ver o Montoya na próxima sexta-feira; que era para eu me preparar. À noite, antes de dormir, Jorge e Roberto, que tinham nove e onze anos, me contavam do tenente. Repetiam com certo orgulho as mesmas histórias que meu pai nos contava, como se elas tivessem se passado com eles. Eu pedia para eles me dizerem apenas como ele era, mas cada um dizia uma coisa. Jorge dizia que ele era alto, Roberto dizia que ele era forte, talvez gordo, não sabiam. Na verdade eles tinham ficado, cada um, com o seu Montoya particular na memória, que era um outro que não existia na realidade. Mas naquele tempo eu não sabia. Para mim o tenente era tudo aquilo aumentado, mais feio, mais sujo, mais mau; porém alguém que eu precisava conhecer de verdade. Eu era o único da família que nunca tinha visto o Montoya, a não ser numa foto, muito antiga, que todo mundo dizia que era muito diferente de como estava.

Era uma foto da época em que meu pai era da ativa, acho que nem conhecia de lei, ainda. Meu pai estava muito diferente também, mais magro, mais forte e tinha mais cabelo. Guardava essa foto na mesa de cabeceira, perto dos óculos, ao alcance das mãos. Pronta para ser pega a qualquer hora, como se fosse uma arma. Eu cansei de ver aquela foto desbotada e, por mais que meus irmãos dissessem que Montoya não era mais daquele jeito, não adiantava. Ele era igual ao homem da foto, só que mais feio, mais sujo e mais mau.

Na sexta-feira, depois do café da manhã, o pai mandou que eu me aprontasse. Pensei que íamos a um quartel. Pensei que eu ia finalmente ver o Montoya na frente de um pelotão, gritando para os soldados com aquela voz de bicho. Mas, não. O pai me colocou no carro e fomos para um lugar afastado. Andamos muita coisa, quase saímos da cidade. Depois de uma hora chegamos. Eu ia dormindo, já. Em volta não havia sinal algum de quartel. Apenas uma praça imunda e uns velhos mendigos mijados que davam milho duro aos pombos, por ordem de um outro atarracado e perneta.

Meu pai reduziu a marcha e foi contornando a praça, devagar. Quando passamos pelos mendigos meu pai parou o carro e mandou eu descer. Fomos até um bar na esquina de onde se podia ver toda a praça e os homens. Meu pai pediu uma água tônica para ele e um refrigerante para mim, sem me perguntar o que eu queria. Então nos sentamos à uma mesa meio bamba e ficamos, de longe, bebendo e olhando os mendigos.

Eu já havia tomado todo meu refrigerante, mas não tinha coragem de dizer nada. Meu pai calado, olhando para os velhos sem tocar na água tônica. Depois de uma meia hora nisso eu já estava arrependido. Não teria droga nenhuma de Montoya na sexta-feira. Foi então que meu pai me disse, sem deixar de olhar para os mendigos:

"Tá vendo aqueles homens ali, filho?"

"Tô sim, pai."

"Tá vendo aquele mais alto ali?, aquele que manda os outros jogarem o milho?"

"Tô."

"Olha como ele tira o dinheiro do bolso e obriga o outro ir até o pipoqueiro, do outro lado da praça, comprar milho para os outros distribuírem pros pombos."

"Tô vendo, pai."

"Esse velho não muda... Vai morrer fodido querendo pisar nos outros."

Só então entendi que o velho mendigo era o Montoya.

"Desde que o Jorge viu o tenente, faz dois anos é isso aí. Não deixo ele escapar. Teve um problema e foi expulso do exército. Trabalhou como balconista numa loja de ferragens, foi ascensorista, se meteu a beber, perdeu a perna num acidente e é isso, acabou. Acabou o tenente Montoya."

O pai não falava para mim. Tentava se convencer que a vingança estava feita, pela vida.

E eu, sem ligar muito para o que o pai dizia, tornei a olhar para a figura do velho decrépito, a pessoa que, aos sete anos, eu odiava mais do que a qualquer um que eu iria odiar por toda minha vida. Mas naquela hora, eu, que havia preparado minha raiva infantil por toda a semana, não pude usá-la. Só pude sentir pena daquilo que havia se transformado o tenente. Voltamos para casa em silêncio.

À medida que fomos crescendo, eu e meus irmãos passamos a não dar mais tanta importância ao Montoya. Só que o pai não. A história desses dois já tinha mais de vinte anos, mas o velho não abandonava o passado. Fomos crescendo e vendo que tudo aquilo não era sadio. Odiar alguém por tanto tempo assim... O sujeito já estava nas últimas, tinha enlouquecido, morava na rua. Pronto, a vida tinha resolvido.

Para o pai, não. Um juiz está habituado a decidir o destino das pessoas. Não era fácil para o pai aceitar que a justiça, nesse caso, estivesse longe dele. A Justiça nunca podia fazer o que o pai desejava que fizesse. Ele tentava se convencer disso, mas não adiantava. Acho que ele odiava mais o tenente porque não podia fazer nada contra ele. Porque tinha que se contentar com os resultados que tinham desembocado da vida.

Todas as sextas-feiras o pai saía depois do café e voltava só à noite. Sempre foi assim, mesmo depois que virou juiz. Depois que saímos naquela sexta-feira da semana do meu aniversário eu entendi o porquê. Ele vigiava os passos do Montoya. Fazia questão de acompanhar sua degradação. Um dia, quando o pai chegava de uma de suas incursões de sexta-feira a um subúrbio da cidade, tomei coragem e perguntei:

"Pai, o senhor alguma vez já falou com o tenente depois que saiu do exército?"

O pai ficou pálido como se eu tivesse contado sobre a morte de seus filhos. Fechou a cara, passou pela sala marchando sobre o assoalho e foi se trancar no quarto. Jorge e Roberto, que estavam vendo televisão na hora, saíram de casa e me deixaram sozinho. A TV ligada. A sala vazia.


Eu posso entender que ninguém que passa pelas humilhações por que passou o pai fica igual. Quando a mãe ainda era viva, ela e a avó protegiam a gente quando o pai tinha ataques de raiva e nos batia tanto que parecia que ia nos matar.

Mas o pai nunca foi previsível. Nunca reagia da mesma maneira. Não importava se a gente tinha feito arte ou mesmo da vez em que eu e o Roberto roubamos coisa lá de casa pra vender e arrumarmos dinheiro pro cinema. Nem dessa vez que era coisa muito séria o pai, que abominava roubo, reagiu igual e nos bateu. Ele levou a gente pro quintal e fez a gente ficar lá, procurando formigueiro, e só voltar depois que a gente tivesse matado a rainha.

O Roberto, que sempre foi esperto para essas coisas, sabia um monte de truques e num instante a gente tinha achado uns três formigueiros, matado as formigas com água quente e achado a rainha de um deles. Mas tivemos que ficar lá no quintal fazendo hora, porque não demoramos tanto e o pai ainda devia estar de cabeça quente. Eu lembro que essa foi a vez que eu falei do Montoya para o meu irmão sem falar dele, mas do pai. Eu já tinha percebido que por mais que o Montoya tivesse esfregado a cara do pai na merda, que tivesse obrigado o pai a beber sangue de galinha viva, batido muito nele e tivesse posto ele na cadeia sem comida uma porção de vezes, aquilo tudo devia ser pouco para o que o pai sentia. O pai tinha ficado meio amalucado. Devia ter alguma coisa muito mais séria que o pai não contava. Foi nesse dia que eu descobri o que era. O Roberto me contou.


* * *


Quando o pai largou o exército nós nem éramos nascidos. Ele sempre dizia que era para a gente estudar bastante, não ficar de vadiagem pela rua que isso não ia trazer nada de bom para nós. O pai estudou muito. Ele trabalhava de dia e estudava para ser advogado, à noite. Naquela época, todo mundo que queria ser alguém na vida estudava para ser advogado. Mas o pai gostava mesmo das leis. Sempre gostou. Isso todo mundo dizia porque se notava. Quando o Roberto nasceu o pai já trabalhava há alguns anos num fórum, eu acho. Demorou muitos anos até que ele virasse juiz, que sempre foi o seu maior sonho. Foi uma festa danada lá em casa no dia em que ele recebeu a notícia. A família ficou muito feliz. O pai já não era nenhum moleque e, depois de tudo que já tinha passado na vida, ele merecia. A única coisa que eu lembro desse dia tão importante para a nossa família é que o pai usava uma roupona preta, igual ao pegnoir da mãe, e levantava a gente no colo, feliz da vida, falando alto, numa alegria medonha. Para nós, além da alegria do pai, ia ser bom porque ele tinha prometido uma bicicleta nova para cada um.

A vizinhança pensou que depois disso nós íamos mudar para uma casa maior, num bairro melhor, mas não. Continuamos a morar onde até hoje a gente mora. Melhoramos a casa, sim, mas o pai era homem simples, não ligava para dinheiro. O pai sempre quis ser juiz não por prestígio ou para melhorarmos de vida, mas porque ia poder decidir também. Na época eu não via nada disso, mas hoje eu sei que o pai tinha uma vontade anormal de fazer justiça, de consertar as coisas erradas. Sobre tudo isso eu faço um esforço danado, mas quase não lembro. Lembro pela memória dos outros como se fosse a minha. E por essa mistura de memórias eu sentia que a nossa vida ia ser muito feliz daí para frente. O pai tinha conseguido o que queria, ia bater menos na gente, que ia ter, cada um, uma bicicleta novinha.

Mas depois que o pai virou juiz a gente passou a ver ele muito pouco, menos ainda do que antes. Eu pensava que ia ser o contrário, mas ele gostava tanto e se dedicava tanto que a gente quase não o via. Quando ele não estava no tribunal ficava num quartinho que tinha mandado construir lá atrás, lendo uma porção de livros e pastas que ele tinha juntado. E ai de quem o incomodasse. A gente chegava da escola, ia lá pedir a bênção e não ficava azucrinando, não; íamos para a rua brincar para não perturbar o trabalho do pai. Para mim aquilo era estranho, mas a mãe dizia que era trabalho, sim. A gente aceitava porque sabia que era melhor que fosse assim. Pegávamos nossas bicicletas e rodávamos pelo bairro, jogávamos futebol ou gude com os garotos da rua de baixo. Às vezes dava briga e o nosso maior medo era que o pai aparecesse. O Jorge, que era meu irmão mais brigão, não aceitava desaforo e a gente, que afinal era irmão, tinha que brigar junto. Eu detestava que isso acontecesse não porque tinha medo de brigar, mas porque o pai não deixava. Dizia que brigar na rua era coisa muito feia, coisa de moleque vagabundo que não tem o que fazer. Nesse caso a sentença era sempre muito ruim. E coitado de quem fosse pego escondendo que tinha brigado... mas mesmo assim a gente brigava. E acabava, quase sempre, apanhando na rua e em casa.

Uma coisa que eu nunca pude entender, até o dia em que o Roberto me contou lá no quintal o segredo do pai e do Montoya, era porque o pai não fazia nada para colocar o tenente na cadeia, já que ele era juiz. É claro que eu pensava que o juiz era uma espécie de super-herói da lei, que podia fazer tudo. Afinal, meu pai era um juiz. Meu pai era tudo para nós. Mas depois daquele dia eu entendi que ainda que ele quisesse fazer alguma coisa, jamais poderia. Estava acima de sua potência, de seus poderes de magistrado. Só hoje, depois de tantos anos, tendo o pai já morrido e estando eu já velho, tendo também meus filhos que o pai nunca conheceu, posso compreender o tamanho de seu dilema. Eu sei da responsabilidade de um pai e da pressão que ele se obriga para ser um exemplo perfeito. Essa era, muito além do tenente Montoya, sua verdadeira obsessão. Por isso sua sede de justiça, não a justiça de Montoya apenas, mas a forma como o pai se dedicava aos seus processos, o modo como devorava livros, estudava-os. Essa era sua maneira de fazer vingança, de provar para nós e para ele próprio que ele não era um fraco.

Mas quando o Roberto me contou que o pai havia feito aquilo eu fechei a mão e apliquei um belo murro em seu nariz. Acertei-o com toda a força que tinha e lembro bem que na mesma hora me deu pena. O Roberto não fez nada. Ficou me olhando com os olhos cheios de lágrimas. Eu ainda xinguei o Roberto de mentiroso, mas eu sabia que só podia ser verdade. Então, quando me acalmei, ele me contou tudo.

Uma noite, há coisa de um ano disso, quando ele já tinha uns catorze e a casa toda já devia estar dormindo, o Roberto ouviu um barulho e, curioso como era, resolveu levantar para saber o que era. Era um barulho esquisito, misto de vozes e gemidos, uma coisa muito diferente. Vinha do quarto de nossos pais. Meu irmão foi chegando, chegando perto da porta e, pelo buraco da fechadura, olhou lá para dentro. O pai estava deitado, no colo da mãe, tentando chorar baixo. A mãe passava a mão em sua cabeça grisalha e dizia para ele esquecer, que era passado, que não tinha sido culpa sua. Mas o pai não se conformava. Dizia que já era, que não tinha jeito de apagar aquela desgraça de sua vida. O Roberto ficou assustado. Pensou em voltar para a cama antes que aquilo se complicasse mais. Toda família tem seus segredos. Todo mundo alimenta um gosto bruto por desvendá-los, como se a verdade fosse algo que sempre devesse prevalecer. Mas estar diante da verdade pode ser uma experiência assustadora.

E Roberto ficou lá. Tampouco tinha forças para voltar para a cama. E ouviu o que faltava, afinal. O Montoya havia trazido um rapaz. O tenente colocou a arma na mão do jovem cabo e, da forma perversa com que dominava o pai, fez com que puxasse o gatilho. Pronto. Havia provado ao Montoya que tinha coragem. Talvez acreditasse que o tenente não o perturbaria mais, que não iria persegui-lo pessoalmente como fizera por mais de dois anos. Estava muito enganado. Montoya o seguiria pelo resto da vida.

A mãe morreu alguns meses depois que soube do segredo. Ela vivia doente há alguns anos. Foi muito triste. O pai pensou que ela tivesse levado seu segredo embora, mas todos nós, exceto minha avó, viríamos a saber. A casa ficou muito triste, mas a tristeza que antes era da morte da mãe logo passou a ser a da culpa do pai; que nós compartilhávamos agora, sem que ele soubesse. Isso não ajudou em nada e eu acredito que foi a partir daí que o velho juiz começou a pensar em agir. O que não está nos autos, o pai nos contou.

Numa daquelas sextas-feiras, o pai pegou o carro e, como de costume, foi visitar o Montoya, que continuava na praça, enlouquecido e autoritário. Provavelmente não era a mesma praça nem os mesmos subalternos, mas isso não faz a menor diferença. O pai chegou com seu carro preto, estacionou-o onde pudesse ver bem o tenente decrépito e ficou lá dentro, apenas observando-o xingar um menino franzino, como aquele que ele, Montoya, havia matado. Ficou ali uns vinte minutos, olhando as humilhações do tenente aleijado. Ninguém fazia nada pelo garoto.

Fazia calor. O pai saiu do carro e se aproximou. O rapaz se atrapalhava para controlar os latidos dos cães sarnentos. Montoya ria, batendo em suas costas com um cabo de vassoura que fazia as vezes de muleta. Quando o tenente dispensou seus soldadinhos, o pai foi até ele. Foi a primeira vez em que os dois se falaram desde que meu pai deixou o exército.

"Tenente Montoya?", perguntou como se não soubesse.

"Às suas ordens", respondeu surpreso, virando-se para o pai.

Quando Montoya se colocou à sua frente, tudo o que o pai viu foi sujeira. Particularmente a sujeira que descia de seu olho esquerdo, como uma espécie de corrimento. Era repulsivo. O pai pensou em desistir e voltar para a casa. Talvez tivesse ido longe demais. Olhou para baixo. Não estava lá a perna direita que tantas vezes pisou suas costelas diante da tropa. Pensou em voltar de novo, mas resistiu:

"O senhor sabe quem eu sou?"

E então, olhando também o pai nos olhos, com o mesmo olhar de potência, falou como se tempo algum houvesse passado:

"Você acha que eu esqueço merda quando vejo?"

"Já faz muito tempo."

"Mas para mim você vai ser sempre o mesmo fraco."

"Velho filho de puta!"

Montoya riu e disse que o pai sabia obedecer.

"Eu posso fazer."

Montoya não respondeu. Olhou pro pai com desprezo como se ele fosse o mendigo e Montoya o juiz, capaz de julgar sobre seu passado e de sentenciá-lo se quisesse.

"Você matou aquele rapaz, tenente."

Montoya riu.

"Não foi da minha arma que o tiro saiu."

"Eu matei porque você mandou."

"Fraco."

"Eu matei porque você me obrigou."

"Estúpido."

"Você matou o garoto, Montoya. Você matou", gritou o pai.

"Você sabia o que ia acontecer se puxasse o gatilho. Você foi fraco. Sempre foi. Eu fiz aquilo para testar se era verdade. Você nem resistiu. Puxou o gatilho e matou aquele vagabundo."

"Você me obrigou a matar, Montoya. Você não ia me perdoar se eu não puxasse o gatilho."

"Não te perdôo por ter puxado, idiota. Foi você quem matou e você não pode me acusar disso. Não pode me culpar por uma coisa que só você fez."

"Eu não mereço essa culpa."

"Não pode me culpar porque você é um assassino. Não me perturbe mais com essa história. Você já devia ter esquecido. Isso faz parte do seu passado. Não tenho nada com isso."

Não havia nada que o pai pudesse fazer.

"Não tem nada com isso? Dessa vez você vai ter."

Tomou da mão do tenente sua muleta e o Montoya caiu, surpreendido. Os outros mendigos vieram acudi-lo, mas o pai gritou com eles, afastando-os. O pai podia ser violento se quisesse. Foi treinado para isso. Então olhou para o velho no chão. O olho esquerdo continuava a pôr para fora aquela secreção. Na boca um sorriso banguela assustado, mas ameaçador. O pai bateu uma, duas vezes naquela cabeça. As outras pancadas ele não se lembra. Apenas bateu até que o cabo quebrasse e continuou batendo, com o cabo quebrado, até que o detiveram. Montoya estava no chão. Ainda vivo. Na boca, ainda o mesmo sorriso, cínico e silencioso, que o xingava tacitamente de fraco.

O pai largou o cabo de vassoura no chão, entrou no carro e foi para casa como se nada tivesse acontecido. Demoraram só dois dias até que o encontraram. Foram os dias mais felizes de nossas vidas.

Juliano
2004-01-19 11:07:43

Sapatos Bicolores


Ribamar acordou chupando a saliva que fugia de sua boca aproveitando o sono calmo que lhe proporcionava o balançar do ônibus. Olhou para os lados e chocalhou a cabeça para afastar o atordoamento. Limpou o rosto com a manga da camisa enquanto tentava descobrir onde estava. Benfica. Levantou dando sinal e cambaleou até a porta. Ouviu o chiar da pressão enquanto a porta se abria. O ônibus ia parando quando Ribamar agradeceu ao motorista e desceu.

Há nove meses procurava emprego. Se acostumou com a idéia de que nunca mais trabalharia. Fazia biscates aqui e ali só para garantir a existência mal levada e tentar sonhar com seu próprio negócio, talvez um bar no Andaraí. Servia qualquer coisa, contanto que fosse sua própria.

Ribamar jamais teve algo que fosse só seu; a casa era do pai da mulher. Morava no Caricó naqueles tempos e era visto como um idiota por toda vizinhança. Não tinha amigos. Trabalhou por muito tempo no almoxarifado de uma firma no Caju e até sabia que o amante de sua mulher havia lhe arrumado aquele emprego, mas fingia não se importar. E fingindo Ribamar levou sua vida até que foi trocando o emprego pela cachaça e sua mulher o trocou pelo amante.

Ficou feliz em deixar de ser motivo de chacota e passar à categoria de indigente. Sem casa, teto ou família, Ribamar apreciou por muito tempo a solidão. Queimou seu fundo de garantia na Cidade Nova junto às meninas da rua Pinto de Azevedo. Teve vida de solteiro e felicidade garantida enquanto o dinheiro durou. Duas semanas de festas. Se amasiou com Tereza, que era uma de suas meninas, e tinha a intenção de ser seu homem quando arrumasse sua vida.

Não sentia nada por ela, possivelmente alguma ternura por alguém que auxiliava tanta gente. Putas são as criaturas mais dignas desse mundo. A admiração que tinha por elas acabou junto com seu dinheiro. Eu até gosto de você, Riba, mas não dá pra gente ficar junto e passar fome. A gente pode continuar se vendo, mas aqui não dá pra você ficar. Ele entendeu que sem o dinheiro não era mais que uma massa gorda e mal formada.

Carregava para cima e para baixo um pacote sujo com suas três mudas de roupa e seu maior bem que eram os sapatos bicolores. Ribamar costumava colocá-los para impressionar os travestis da Lapa e as mulheres da zona nos seus últimos tempos de solteiro. Sentia-se um sujeito importante em cima deles. Esquecia a cara feia de nariz grande e achatado, os olhos estrábicos e a barriga imensa quando os calçava. Não lembrava ser um homem que fedia a azedo e da boca desdentada. Esquecia que era um excremento e que ninguém se importava com ele. Os sapatos lhe devolviam a dignidade que nunca teve, eram um instrumento de mudança da sua verdade. Os bicolores lhe conferiam personalidade e determinação. Não era um joão ninguém, mas um homem que mesmo sem estudo podia ter algo para si. Com aqueles sapatos ultrapassados já não se sentia nem corno nem humilhado.

O pacote, todo amassado, se acomodava em sua axila que a muitos dias não conhecia água. Na mão um jornal amarrotado com endereços circulados. Caminhou pela Suburbana até alcançar o número 834 da Prefeito Olimpio de Melo. Era um galpão grande com um portão de aço. Tocou a campainha e esperou que uma porta pequena do portão se abrisse. É daqui que estão pedindo um auxiliar de almoxarifado? O guarda não respondeu, apontou para o interior à esquerda onde já havia uma fila com umas vinte pessoas. Abriu o pacote, colocou os bicolores enquanto esperava na fila. Não foi aceito. Não tinha endereço nem referências. Acharam que ele era ex-presidiário. Bêbado não tem referência, pensou sem dizer.

Ribamar arrastou seu corpo sujo e fedorento durante todo o dia por cinco empresas. Foi andando quase até o Méier sem arranjar nada. Só fome e muito ódio do mundo. Cansou de trocar os sapatos e viu que eles já não funcionavam. Sentia o peso do fracasso por cada centímetro de seu corpo destruído pela decepção. O cheiro de seu suor incomodava até a ele próprio. Rodelas sebosas se formavam na camisa encardida de gola e punhos puídos, a calça remendada tinha o traseiro sujo da imundície do mundo que dizia não haver vagas. Os dentes podres, a barba encalacrada e o pescoço coberto de granfanha eram a vingança biológia que cultivava como resposta aos outros. Asco era a única forma de vingança que lhe restava. Já haviam lhe tomado tudo agora.

Seis e quinze. Ainda fazia calor. Ribamar entrou num bar na Vinte e Quatro de Maio pediu uma branquinha com o dinheiro que economizou por todo o dia caminhando, viu sua imagem num espelho e sentiu pena de si. Havia um gosto amargo na boca. Puxou um catarro e despejou-o no chão. Ei idiota, você faz isso em casa? Virou num só gole e se retirou do bar. Circulou pelo bairro já que não tinha para onde ir. Quis ser amado, mas já não podia pagar. Vagou errante até o Engenho de Dentro. Dez e vinte.

Ribamar avistou uma garotinha albina quando ia cruzar a Souza Aguiar com a Bueno de Paiva. Pensou como seria ter uma filhinha albina e achou graça. A menina olhou assustada para o monte de estrume Ribamar. Olhou com satisfação e imaginou como seria possuir uma mulher como aquela. A menina seguiu seu caminho apertando o passo enquanto os pensamentos do homem se fixavam na mulherzinha de onze anos. Começou a segui-la pelas ruas mal iluminadas pensando que gostaria de ser feliz. Excitou-se com a idéia de tomá-la para si acariciar seus cabelos brancos e beijar sua pele clara como açúcar.

Encostou-se num poste e abriu o pacote. Tirou o velho par com furos na sola e colocou os bicolores. A albina estava longe, por certo, mas já não andava tão depressa. Deixou o pacote no chão e percorreu a rua escura com cuidado para não sujar ou arranhar os bicolores. Sentia-se homem o bastante para possuir qualquer mulher. Não teve dificuldade para alcançar a garotinha. Abraçou-a com força se assustando com os gritos da menina. Excitava-o ver o contraste de suas peles. A limpeza, a higiene, o perfume daquela mulher.

Levou-a para um canto ainda mais escuro e calou-a com um beijo. Tocou as feridas de sua boca no pescoço da menina que chorava e pedia para que parasse com desespero inconformado. Rasgou sua blusa e alisou a barriga e os peitinhos que começavam a nascer. A albina derramava suas lágrimas e fechava os olhos fugindo de Ribamar. Levantou sua saia, desceu a calcinha e a desvirginou com o dedo sujo. Abriu a braguilha e a penetrou com todo seu amor. A garotinha chorava um gemido soluçado enquanto cantava baixinho um hino religioso. O êxtase foi rápido. Ele estava satisfeito. Não pagou. Puxou o fecho da calça e olhou com estranheza a menininha que lhe havia recusado. Se afastou para a luz fraca. Os bicolores brilharam novamente. Ribamar sorriu. A albina não se mexia, movia somente os olhos e chorava com a garganta sem fazer nenhum barulho.

Voltou até o poste e pegou o pacote do chão. O mundo não era tão mau assim.

Juliano.
2004-03-19 11:09:23

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

A locomotiva de Kal



O trem era a vida de Kal. Na verdade, não era apenas a máquina que formava a sua identidade no mundo, mas tudo que a envolvia. Quando criança gostava de se ajoelhar no banco do trem para observar a paisagem que passava adiante. Não prestava atenção nos detalhes, se ligava apenas no todo que conformava em sua mente um quadro vivo.

A mãe de Kal trabalhava como empregada doméstica em Ipanema e quando não tinha com quem deixar o filho o levava para o serviço. Saiam da pequena casinha alugada lá em Paracambi às cinco da manhã para chegar na estação de metrô da Praça General Osório às sete e meia. Por cima dos trilhos Kal via a paisagem lentamente se urbanizando: as fábricas substituíam a mata; o comércio ia se aglomerando em torno das casas; o barulho dos carros começava a soar cada vez mais alto; finalmente, começavam a aparecer os prédios, primeiro os pequenos, de apenas três ou quatro andares e depois aqueles que escondem o horizonte. Na velocidade da engrenagem todas estas imagens iam se conformando na consciência de Kal, como se fosse a eletricidade que viaja através de um fio condutor.

Kal, obviamente, nunca quis ser astronauta, seu negócio era pilotar um trem. Já na adolescência não prestava mais atenção na paisagem, agora sim a máquina o enfeitiçava. Como era possível fazer aquela engenhoca funcionar? Era a pergunta que lhe vinha à cabeça todos os dias antes de deitar. Logo descobriu o trabalho que dava pra colocar um trem em movimento: os operários da fábrica, os controladores de tráfego e os maquinistas. Todos estes personagens habitavam o pensamento de Kal. Era como se a locomotiva fosse capaz de situar estes homens no mundo.

Após terminar o segundo grau, Kal passou quase cinco anos desempregado. Sua mãe, já cansada da vida, não dava mais conta do serviço e costumava reclamar de seu patrão o dia inteiro:

- Aquilo lá só quer saber de aparecer e sair por aí torrando grana, mas comigo é um mão de vaca. Nunca me deu um aumento e nem um dinheirinho extra quando me manda arrumar a zona que fica depois daqueles bacanais!! - dizia ela.

No seu primeiro ano como maquinista na Central do Brasil, Kal tratou de aposentar a mãe. Seu salário não era lá grandes coisas, mas, junto com a pensão vitalícia que recebiam do falecido pai, já dava pra deixar a sua velha viver com tranquilidade. Com o tempo, Kal passou a participar ativamente do sindicato dos ferroviários. Nunca foi chapa branca, sempre se comprometeu na defesa por maior autonomia de gestão dos trabalhadores, mesmo que isso pudesse lhe custar o emprego. Sabia identificar, sem sombras de dúvidas, o tacão que tinha que enfrentar.

Numa das festas de fim de ano organizadas pelos trabalhadores, Kal conheceu Eduardo, um velho maquinista morador da Gamboa que já estava quase para se aposentar. Eduardo era carinhosamente chamado, entre os trabalhadores da central, de Monjopina. A empatia entre os dois foi imediata e a partir daí a amizade se fortaleceu cada vez mais. No boteco, entre um gole e outro da água-benta, Kal costumava lamentar o esvaziamento das reuniões do sindicato. Não entendia como os companheiros podiam abrir mão de aproveitar um espaço para discutir os dilemas da categoria. 


O problema de Kal, dizia Monjopina, era que ele achava que podia entender e orientar os desejos e as ambições de todos os seus companheiros de trabalho de forma sensata e objetiva. De fato, Kal era bastante sensato e objetivo. Entretanto, não entendia que Miquéias, por exemplo, preferia a companhia de um dos gerentes da concessionária que administrava a ferrovia, o Ladislau, porque ambos eram rubro-negros doentes.

 - Veja também o Moacir (explicava Monjopina) esse cara falta a todas as reuniões para ir à igreja junto com aquele militar pela saco”. Monjopina referia-se a Thomas, um militar que trabalhava no Palácio Duque de Caxias. Monjopina não gostava do militar pela saco, pois várias vezes ele havia deixado claro, em prosas acirradas na padaria do Seu Manel, que empregado só tinha o direito de obedecer o patrão e que greve era coisa de vagabundo.

Thomas era extremamente autoritário, a ponto de só conseguir elaborar idéias se elas servissem para guiar as ações de outros homens. Mas isso era só o começo da loucura de Thomas, o pior era que todas as suas idéias provinham de seu mundinho inóspito, que se alimentava da necessidade de erguer barreiras e construir armaduras para evitar seus próprios medos, se proteger e neutralizar as suas fraquezas. Afinal, que sujeito é esse que só vê medo em si e nos outros e que tenta, obstinadamente, adaptar o mundo aos seus próprios valores? Autoritário e cagão, estas eram as palavras com as quais Monjopina definia Thomas.

Diversamente do egocêntrico e solitário Thomas, Kal tinha um espírito gregário e quando entornava umas estricninas brabas sonhava alto com o dia em que todos os trabalhadores do mundo se uniriam numa gigantesca assembléia que marcaria o começo da maior transformação mundial de todos os tempos. Entretanto, ambos viviam a mesma ilusão, a de que os homens podem mudar radicalmente o destino do mundo apenas tomando consciência daquilo que determina o rumo dos acontecimentos. O enfrentamento seria uma conseqüência automática desta tomada de consciência, bastaria um estalar de dedos para começar a montagem do novo cenário. Mas, o velho Monjopina sabia que as coisas não eram tão fáceis assim.

O militar e o maquinista desejavam resolver os seus conflitos, que não eram apenas pessoais, afinal, por incrível que pareça, os seres humanos se assemelham muito uns com os outros, o problema é que as semelhanças mudam o tempo todo. O medo era o fator determinante na vida de Thomas, tudo o que acontecia ao seu redor era sugado por este sentimento. Como o enfrentava? Fugindo, se escondendo atrás da autoridade, da força e valendo-se da superioridade hierárquica. Kal, por sua vez, sentia-se completamente inserido no cosmos formado pelo contexto da labuta, vivia para a luta sindical, mas entendia a disputa entre os empregados e os patrões valendo-se de uma operação racional assustadoramente fria.

Monjopina entendia que o medo está em nós e que o trabalho rege a vida de milhões de pessoas em todo mundo. Estas são, sem sombra de dúvida, questões fundamentais. Porém as pessoas vivendo em seus cantos e seus tempos são capazes de reinventar, a todo instante, os seus medos e suas lógicas. Thomas inventou a sua própria solução para o seu medo, que podia fazer sentido também para a sua panelinha de milicos, mas era demais querer que o mundo inteiro enxergasse com os mesmo olhos que ele. Kal entendeu, de forma lúcida, a malandragem de seu patrão, mas não entendia que as relações de camaradagem entre os operários da central não brotavam simplesmente do trem. Não eram as máquinas e sim os homens os responsáveis pelos destinos do mundo.

Na tarde do dia 30 de Agosto de 2007, uma tragédia parou a Central do Brasil e fez muita gente entrar em pânico. Dois trens, um deles lotado, colidiram violentamente próximo à estação de Austin, em Nova Iguaçu. Seguindo o seu papel na trama dos acontecimentos que fazem com que a humanidade seja o elenco de uma enorme crônica, a mãe de Kal saía de um almoço para o qual havia sido convidada na casa do antigo playboy para quem trabalhou a vida inteira. Apesar das brigas homéricas entre os dois, não há nada que explique a saudade, pois foi apenas este o motivo do convite e de seu aceite imediato. Às duas da tarde, a mãe de Kal disse estar com um pouco de dor de cabeça e resolveu ir embora. Às duas e vinte e cinco, saiu da casa do playboy rumo à estação General Osório e quase perdeu o trem para Paracambi, que saiu lotado da Central às três e dez. A trama dos acontecimentos que fizeram a mãe de Kal passar dessa pra melhor poderia chegar ao infinito, mas é desnecessário narrar os fatos em detalhes.

Imediatamente após o acidente, vários moradores das redondezas se juntaram aos passageiros que saíram ilesos do acidente para ajudar os mais de cem vitimados. Uma tragédia é capaz de despertar os mais elevados princípios civilizacionais em qualquer ser humano. Afinal o que move a civilização, o drama ou razão?
 
Após apuradas as causas do acidente, o conflito se estabeleceu. De um lado, os gerentes da concessionária dizendo que o maquinista e o controlador de tráfego eram os culpados, de outro, o sindicato dos ferroviários dizendo que a estrutura das linhas e dos trens estava deteriorada. Kal, ainda extremamente abalado com a morte de sua mãe, sabia que a empresa apenas maquiava as estações, mas não investia um centavo na malha ferroviária. A concessionária indicou os culpados e os demitiu. Não deu outra, a assembléia fez uma convocação que foi prontamente atendida pelos operários. Seguiu-se uma greve, passeatas e idas ao Palácio Tiradentes.

Assentada a poeira do tumulto, uma grande homenagem foi feita à mãe de Kal, a Dona Henrinete ganhou até um trem com o seu nome. Kal manteve a sua ética racional, mas depois do acidente passou a se apegar a ela pelo afeto que sentia aos demais companheiros. As injustiças surgem nos corações e não nas mentes – pensou Kal enquanto observava o asfalto fumar o aguaceiro que caía num domingo abrasador de janeiro.


CX

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Álbum de Recordações



Direção e animação: André Gavazza. E-mail: agavazza@gmail.com
Colaboração: Clementino Jr.
Para ver mais vídeos do autor, clique sobre estes links:
http://www.youtube.com/user/agavazza3
http://www.behance.net/agavazza

quinta-feira, 1 de maio de 2008

O PRESIDENTE E O PAÍS


Contei numa postagem anterior que tive um encontro mais do que casual com o Presidente do Haiti. Hoje, passando pelas ruas de Jacmel, fui abordado por estudantes e depois, encontrei M. Serge, dono de um cyber café, que falaram de Preval. Todos são unânimes em apontar que as raízes dos problemas que o país atravessa estão fundadas exatamente numa certa atitude de Préval, que se demonstra incapaz de agir e quando age não dá nenhuma impressão de que suas ações possam realmente surtir efeito.



Quanto a mim, nenhum encontro superficial pode causar alguma impressão que não seja absolutamente falsa sobre as coisas, e por mais que acreditemos que "a primeira impressão é a que fica", não poderia dizer nada de muito profundo sobre o presidente do Haiti. Mas de outro lado, os fatos que se seguiram a este encontro, toda a situação que forjou ele, o evidente confronto entre Marcelin e Préval naquele dia, velhos militantes políticos do país, o jogo de provocações mútuas que pouco podíamos entender que se desenrolava e a crise que explodiu uma semana depois permitem, como sempre digo, fazer um relato impressionista sobre o presidente. E é disso que vou falar. Vou, sem nenhum compromisso intelectual mais profundo, fazer relações entre aquele encontro e o desenrolar da crise da última semana.



Como contei, havíamos chegado de Cité Soleil, onde fomos com Marcelin, que faz lá um projeto de pesquisa/intervenção baseado nas demandas locais sobre os problemas. O projeto de Marcelin parte de uma percepção local de que, a despeito de todos os projetos de intervenção de ONGs em Cité Soleil, muito pouco aconteceu que mudasse efetivamente a vida das pessoas. As ONGs estão lá, o dinheiro chega, os projetos existem, mas Cité Soleil não avança sobre os reais problemas e, principalmente, não supera os estigmas ligados ao lugar. Isto posto, Marcelin propôs uma discussão com os agentes políticos locais, líderes, chefes de organizações populares, atores sociais envolvidos no cotidiano local, a prefeitura de Cité Soleil (sim, a maior favela do Haiti é uma cidade, com administração autônoma - seria como dizer que a Rocinha se tornasse um município). O objetivo desta discussão é organizar estes agentes e que eles proponham uma pauta de pesquisa que parta de seus próprios interesses e não dos acadêmicos ou agências de cooperação que olham e se debruçam sobre Cité Soleil.



Não sei até onde este tipo de idéia pode funcionar, mas o simples fato de ter uma idéia como essa já é bastante significativo e os resultados disto podem ser, no mínimo, muito interessantes. Poucas vezes vemos os atores sociais os quais estudamos pautarem nossas pesquisas. Voltamos ao Olofsson muito satisfeitos e animados com o que poderia acontecer no sábado, onde haveria um grande fórum. Marcelin estava elétrico quando chegamos ao Olofssoon, para que ele conversasse com Christophe Wargny, do Le Monde Diplomatique. Marcelin havia convidado-o para ir à Cité Soleil naquela sexta, porém, em virtude de sua agenda, Wargny disse que não poderia ir. Disse, no entanto, que queria conversar com ele sobre Cité Soleil.


Quando Marcelin chegou para falar com Wargny, este estava tomando um rum na varanda do Olofsson com Préval, e convidou-o a se juntar aos dois para conversar. Os outros havíamos seguido imediatamente para o quarto, onde conversávamos numa ante-sala, quando fomos chamados para descer e falar com o Presidente do Haiti. Como já contei, quase que não levo a sério o convite, afinal, o que é que o presidente do país ia querer comigo?


A conversa com o presidente foi esquisita. Esquisita pelo local, pela ausência total de protocolo, pelo inusitado de um estudante de doutorado em antropologia ser instado a falar com o presidente de um país. Há que se estranhar também o fato de estarmos sentados em uma varanda de um hotel, em Carrefour des Feuilles, uma das áreas onde nas semanas seguintes haveriam os mais pesados e violentos protestos contra o seu governo. Era inusitado que, num país onde os protestos assumiram a face que todos viram pela TV nos últimos dias, o presidente pudesse sentar na varanda de um bar ou hotel de Copacabana para conversar com amigos.


O que me incomodou especialmente foi a sua atitude quando era feita qualquer pergunta sobre os problemas dos país, sobre Cité Soleil e a pobreza violenta que ataca a maior parte dos habitantes do país. Quando perguntado sobre as organizações populares, ele apenas dizia que o "o povo prescinde do Estado para se organizar. O país tem que encontrar o seu caminho e é o próprio povo quem tem que fazer este caminho". A pergunta óbvia que nos incomodava era exatamente: Sim, presidente, e que caminho o senhor acha que o país tem que seguir? Escorregadio como uma cobra ensaboada, Preval se esquivava de qualquer resposta ou posição.


Causava até uma certa irritação suas declarações sobre o povo. Não era um desprezo ou um elitismo, mas uma espécie de indiferença, que parecia dizer algo sobre uma impotência do poder do presidente em mudar efetivamente as coisas. Não era uma indiferença prepotente, mas uma indiferença estranha, de quem conhece o drama, mas parece não mais acreditar nos instrumentos que dispõe para operar uma transformação efetiva. Não havia mau-caratismo nisso, apenas uma impotência que produz uma indiferença e uma indiferença que leva à inação.


Isso leva a pensar sobre o exercício do poder em países como o Haiti. Boa parte dos investimentos no país dependem essencialmente da cooperação internacional. A parte mais fundamental e essencial da segurança pública no país é feita pela Minustah, que ajuda a reorganizar e a dirigir a polícia nacional. É praticamente nula a capacidade de arrecadação do Estado e, com efeito, a possibilidade de investimento público é mínima. O país não tem reservas próprias de gás e combustíveis, essenciais para o funcionamento do país. O que pode um presidente fazer num quadro como este?


Nada?


Talvez, mas no mínimo, seria importante ele demonstrar vontade de fazer. Um desejo de potência que seria justamente a força capaz de fazer destas impossibilidades as armas para a criação de alternativas. Infelizmente, este não é Préval. Aliás, falta ao Haiti exatamente este tipo de líder, gente com vocação par criar um jardim de pedras em pleno deserto. Essa gente existe aqui, dispersa em meio as massas que protestam, que se matam e são mortas nestes conflitos. Pode ser que neste exato momento esteja sendo gestado no meio da massa um líder, um novo Louverture, um novo Dessalines, que possa conduzir este país à sua nova revolução.


Abraços