quarta-feira, 21 de novembro de 2007

O inóspito mundo de Thomas



Thomas havia sido um menino muito tímido que convivia com muitos medos e indecisões e agora, já na vida adulta, sentia o peso do mundo lhe arriar o corpo todos os dias. Cada conduta que seguia, cada gesto que via os outros fazerem, cada fala sua e tudo que ouvia era como um martelo caindo sobre um telhado de vidro. Porém, seus pensamentos lhe faziam voar alto. Só assim conseguia relaxar e trabalhar em paz. Com seus pensamentos criava seus próprios mundos. E olha que não eram mundos perfeitos, eram cheios de problemas, dilemas e obstáculos. Mas, Thomas adorava criá-los e enfrentá-los.
Um dia, numa de suas viagens, Thomas tentou imaginar seu mundo real. Nunca tinha feito isto. Sabia que seria uma árdua tarefa, apesar de sua complexa imaginação. Para Thomas era natural diferenciar, sem maiores dificuldades, seu mundo real de seus mundos imaginários. Como então juntar os dois? Ele acharia ridículo se porventura, no meio de seu vôo criativo, lhe passasse pela cabeça a possibilidade de confundir seus mundos imaginários com seu mundo real. Como então iria imaginar seu mundo real sem ao menos cogitar a possibilidade de torná-lo imaginário?
É fácil perceber que Thomas é um cara complicado, do tipo que se não tomar cuidado acaba se perdendo num labirinto de pensamentos confusos e desconexos. Na verdade, tantos eram os nexos criados por Thomas que seria preciso milhares de anos para decifrá-los. Anos de vida não faltavam a este senhor que provavelmente viverá por muito tempo. Bom, é melhor abandonar por hora os pensamentos e falar um pouco da vida desse sujeito até agora misterioso.
Ano que vem, no dia cinco de Abril, Thomas completará quatrocentos e vinte anos. É um senhor respeitado no seu meio, embora um pouco desgastado. Fala-se muito dele, muitos o criticam e muitos o chamam para esclarecer certas coisas complexas. Pode-se pensar: Como assim esclarecer? Esta palavra não serve pra caracterizar Thomas! Mas, por incrível que pareça, as pessoas o invocam pra simplificar muita coisa sem fácil explicação.
Thomas é um burocrata militar daqueles clássicos (na falta de melhor capacidade de descrição, tomo a liberdade para usar o rótulo “clássico”, afinal as descrições sem os rótulos se tornariam tratados, só é preciso saber usá-los). Bom, Thomas trabalha no Comando Militar do Leste. Recebeu esta graça por causa da procedência inglesa de sua família materna, formada em sua maioria por fiéis católicos e Thomas seguia esta tradição religiosa com muito afinco. Lá na repartição o chamam de Tomás, na verdade é assim que o chamam desde que nasceu, mesmo com sua mãe sempre corrigindo as pessoas. Este velho e desgastado funcionário público passava a maior parte do seu tempo pensando em se aposentar e levar a metade do resto de sua vida jogando damas na praça e a outra metade ajudando seu sobrinho a tocar um boteco em Honório Gurgel, onde moravam. Enquanto esse dia não chegava tinha que se contentar em levantar todos os dias às seis da manhã e andar sempre na linha. Seguia no parador que vinha de Belford Roxo até a Central e caminhava alguns metros pra chegar na repartição às oito. Antes, porém, tomava uma média na padaria ao lado, onde já começava sua peregrinação intelectual rotineira.
Volta e meia observava, entre um gole e outro do café com leite, um policial recolhendo a mercadoria de algum camelô do comércio logo em frente e comentava maliciosamente com o Seu Manel da padaria: “Que filha da puta, né Seu Manel? Tem mais é que se fuder mesmo!” E o seu Manel complementava: “Esse aí já vai tarde Seu Tomás. Roubam a mercadoria dos outros e os clientes da gente, que é sério”. O Seu Manel achava que a gente séria, como ele, era moralmente superior e isso lhe dava o direito de querer que os camelôs, desordeiros natos, fossem banidos pela polícia. Sempre era a mesma coisa, afinal Thomas sabia explorar situações ordinárias da vida pra extrair das pessoas um lado conservador e ordeiro e o Seu Manel, um velho português de bigode, era seu alvo predileto. Mas, apesar da malícia, Thomas era um cara extremamente fiel aos seus princípios. A ironia não lhe servia para questionar seus valores, mas para reforçá-los. E Thomas sabia que era preciso ser irônico para ser confiável, pois todos desconfiam de um cara muito sério.
Nessas ocasiões, de polícia baixando o cacete em camelô, o Lenny vinha sempre correndo com um saco na mão pra se esconder no vão que tinha entre a padaria e a casa vizinha. Thomas olhava com certo ar de pena mas logo disfarçava, pois não queria que o seu Manel pensasse que ele nutria tal sentimento pelo rapaz. Afinal, seu chefe - o General Carlos - vinha todos os dias na padaria tomar um café na hora do almoço e Thomas fazia uma complexa ligação entre o seu Manel e o General Carlos. Para ele a sociedade era formada por uma confusa composição orgânica, formada pelos mais variados indivíduos e que ditava as regras de seu próprio mundo de uma forma que nem ele saberia explicar direito. O Lenny tinha trabalhado na repartição como faxineiro, mas no camelô ganhava por mês duzentos reais a mais. Como na repartição trabalhava para uma firma terceirizada, quase não tirava férias e nem ganhava hora extra. De fato estava melhor no camelô, afinal tinha três bocas pra alimentar. O problema é que levava porrada da polícia e isso incomodava o Thomas, pois ele não podia pensar no problema do Lenny, já que isso abalaria a estrutura do seu mundo organicamente constituído.
Quando chegava na repartição, Thomas sempre conferia se a cartilha do bom funcionário militar estava presa direitinho na parede ao lado do elevador, afinal ele havia feito esta cartilha com muito esmero. Pensou em tudo cuidadosamente de modo que pudesse falar sobre todas as coisas que achava importantes em apenas dez mandamentos. Gabava-se dizendo que se Moisés fez por que ele não poderia fazer? Thomas tinha tanto orgulho desta cartilha que achava que ela devia existir em todas as repartições militares do mundo. Logo se vê que Thomas também é exageradamente confiante. Não era. Como eu disse foi um menino tímido e cheio de medos e indecisões, mas desde que começou a trabalhar para o General Carlos tornou-se cada vez mais confiante e foi também quando começou a tornar-se paranóico. Tinha tanto medo do General Carlos que se sentia vigiado por ele até quando ia ao banheiro. Pra dar conta desta paranóia aprendeu a organizá-la, passando a levar a vida de forma sistemática. Tudo tinha que se encaixar e foi aí que sua religiosidade lhe serviu de base. Na religião católica tinha os princípios, já arraigados em sua consciência, que lhe podiam dizer por onde começar sempre que um turbilhão de coisas desconexas decantava no seu mundo particular.
A confiança veio com o trabalho, ou melhor, com o respeito com que era tratado no trabalho. Pela disciplina e eficiência com que realiza suas obrigações, Thomas tornou-se um funcionário muito estimado por todos e inclusive pelo General Carlos. Jamais deixa a peteca cair e volta e meia ajuda os novatos, ainda perdidos em suas funções, a descascar alguns abacaxis que caem em suas mãos.
A objetividade racional de Thomas se confundia com um ideal missionário. Sua missão era disciplinar as pessoas a sua volta e nos dias em que não conseguia cumprir essa cruzada se sentia arrasado e em débito com o mundo orgânico arraigado aos seus princípios ortodoxos. Thomas sabia exatamente como cada um o condenaria se falhasse em sua missão e até o seu Manel da padaria entrava nessa parada, apesar de o seu Manel não fazer idéia de qual era a missão do Thomas. Será mesmo que não fazia?
Com esta dúvida no ar, Thomas bebeu mais um gole de cerveja e ficou contemplando a paisagem com a certeza de que tinha começado a imaginar seu mundo real.


CX