O trem
era a vida de Kal. Na verdade, não era apenas a máquina que formava a sua
identidade no mundo, mas tudo que a envolvia. Quando criança gostava de se
ajoelhar no banco do trem para observar a paisagem que passava adiante. Não
prestava atenção nos detalhes, se ligava apenas no todo que conformava em sua
mente um quadro vivo.
A mãe de Kal trabalhava como empregada doméstica em Ipanema e quando não tinha com quem deixar o filho o levava para o serviço. Saiam da pequena casinha alugada lá em Paracambi às cinco da manhã para chegar na estação de metrô da Praça General Osório às sete e meia. Por cima dos trilhos Kal via a paisagem lentamente se urbanizando: as fábricas substituíam a mata; o comércio ia se aglomerando em torno das casas; o barulho dos carros começava a soar cada vez mais alto; finalmente, começavam a aparecer os prédios, primeiro os pequenos, de apenas três ou quatro andares e depois aqueles que escondem o horizonte. Na velocidade da engrenagem todas estas imagens iam se conformando na consciência de Kal, como se fosse a eletricidade que viaja através de um fio condutor.
Kal, obviamente, nunca quis ser astronauta, seu negócio era pilotar um trem. Já na adolescência não prestava mais atenção na paisagem, agora sim a máquina o enfeitiçava. Como era possível fazer aquela engenhoca funcionar? Era a pergunta que lhe vinha à cabeça todos os dias antes de deitar. Logo descobriu o trabalho que dava pra colocar um trem em movimento: os operários da fábrica, os controladores de tráfego e os maquinistas. Todos estes personagens habitavam o pensamento de Kal. Era como se a locomotiva fosse capaz de situar estes homens no mundo.
Após terminar o segundo grau, Kal passou quase cinco anos desempregado. Sua mãe, já cansada da vida, não dava mais conta do serviço e costumava reclamar de seu patrão o dia inteiro:
- Aquilo lá só quer saber de aparecer e sair por aí torrando grana, mas comigo é um mão de vaca. Nunca me deu um aumento e nem um dinheirinho extra quando me manda arrumar a zona que fica depois daqueles bacanais!! - dizia ela.
No seu primeiro ano como maquinista na Central do Brasil, Kal tratou de aposentar a mãe. Seu salário não era lá grandes coisas, mas, junto com a pensão vitalícia que recebiam do falecido pai, já dava pra deixar a sua velha viver com tranquilidade. Com o tempo, Kal passou a participar ativamente do sindicato dos ferroviários. Nunca foi chapa branca, sempre se comprometeu na defesa por maior autonomia de gestão dos trabalhadores, mesmo que isso pudesse lhe custar o emprego. Sabia identificar, sem sombras de dúvidas, o tacão que tinha que enfrentar.
Numa das festas de fim de ano organizadas pelos trabalhadores, Kal conheceu Eduardo, um velho maquinista morador da Gamboa que já estava quase para se aposentar. Eduardo era carinhosamente chamado, entre os trabalhadores da central, de Monjopina. A empatia entre os dois foi imediata e a partir daí a amizade se fortaleceu cada vez mais. No boteco, entre um gole e outro da água-benta, Kal costumava lamentar o esvaziamento das reuniões do sindicato. Não entendia como os companheiros podiam abrir mão de aproveitar um espaço para discutir os dilemas da categoria.
O problema de Kal, dizia Monjopina, era que ele achava que podia entender e orientar os desejos e as ambições de todos os seus companheiros de trabalho de forma sensata e objetiva. De fato, Kal era bastante sensato e objetivo. Entretanto, não entendia que Miquéias, por exemplo, preferia a companhia de um dos gerentes da concessionária que administrava a ferrovia, o Ladislau, porque ambos eram rubro-negros doentes.
- Veja também o Moacir (explicava Monjopina) esse cara falta a todas as reuniões para ir à igreja junto com aquele militar pela saco”. Monjopina referia-se a Thomas, um militar que trabalhava no Palácio Duque de Caxias. Monjopina não gostava do militar pela saco, pois várias vezes ele havia deixado claro, em prosas acirradas na padaria do Seu Manel, que empregado só tinha o direito de obedecer o patrão e que greve era coisa de vagabundo.
Thomas era extremamente autoritário, a ponto de só conseguir elaborar idéias se elas servissem para guiar as ações de outros homens. Mas isso era só o começo da loucura de Thomas, o pior era que todas as suas idéias provinham de seu mundinho inóspito, que se alimentava da necessidade de erguer barreiras e construir armaduras para evitar seus próprios medos, se proteger e neutralizar as suas fraquezas. Afinal, que sujeito é esse que só vê medo em si e nos outros e que tenta, obstinadamente, adaptar o mundo aos seus próprios valores? Autoritário e cagão, estas eram as palavras com as quais Monjopina definia Thomas.
Diversamente do egocêntrico e solitário Thomas, Kal tinha um espírito gregário e quando entornava umas estricninas brabas sonhava alto com o dia em que todos os trabalhadores do mundo se uniriam numa gigantesca assembléia que marcaria o começo da maior transformação mundial de todos os tempos. Entretanto, ambos viviam a mesma ilusão, a de que os homens podem mudar radicalmente o destino do mundo apenas tomando consciência daquilo que determina o rumo dos acontecimentos. O enfrentamento seria uma conseqüência automática desta tomada de consciência, bastaria um estalar de dedos para começar a montagem do novo cenário. Mas, o velho Monjopina sabia que as coisas não eram tão fáceis assim.
O militar e o maquinista desejavam resolver os seus conflitos, que não eram apenas pessoais, afinal, por incrível que pareça, os seres humanos se assemelham muito uns com os outros, o problema é que as semelhanças mudam o tempo todo. O medo era o fator determinante na vida de Thomas, tudo o que acontecia ao seu redor era sugado por este sentimento. Como o enfrentava? Fugindo, se escondendo atrás da autoridade, da força e valendo-se da superioridade hierárquica. Kal, por sua vez, sentia-se completamente inserido no cosmos formado pelo contexto da labuta, vivia para a luta sindical, mas entendia a disputa entre os empregados e os patrões valendo-se de uma operação racional assustadoramente fria.
Monjopina entendia que o medo está em nós e que o trabalho rege a vida de milhões de pessoas em todo mundo. Estas são, sem sombra de dúvida, questões fundamentais. Porém as pessoas vivendo em seus cantos e seus tempos são capazes de reinventar, a todo instante, os seus medos e suas lógicas. Thomas inventou a sua própria solução para o seu medo, que podia fazer sentido também para a sua panelinha de milicos, mas era demais querer que o mundo inteiro enxergasse com os mesmo olhos que ele. Kal entendeu, de forma lúcida, a malandragem de seu patrão, mas não entendia que as relações de camaradagem entre os operários da central não brotavam simplesmente do trem. Não eram as máquinas e sim os homens os responsáveis pelos destinos do mundo.
Na tarde do dia 30 de Agosto de 2007, uma tragédia parou a Central do Brasil e fez muita gente entrar em pânico. Dois trens, um deles lotado, colidiram violentamente próximo à estação de Austin, em Nova Iguaçu. Seguindo o seu papel na trama dos acontecimentos que fazem com que a humanidade seja o elenco de uma enorme crônica, a mãe de Kal saía de um almoço para o qual havia sido convidada na casa do antigo playboy para quem trabalhou a vida inteira. Apesar das brigas homéricas entre os dois, não há nada que explique a saudade, pois foi apenas este o motivo do convite e de seu aceite imediato. Às duas da tarde, a mãe de Kal disse estar com um pouco de dor de cabeça e resolveu ir embora. Às duas e vinte e cinco, saiu da casa do playboy rumo à estação General Osório e quase perdeu o trem para Paracambi, que saiu lotado da Central às três e dez. A trama dos acontecimentos que fizeram a mãe de Kal passar dessa pra melhor poderia chegar ao infinito, mas é desnecessário narrar os fatos em detalhes.
Imediatamente após o acidente, vários moradores das redondezas se juntaram aos passageiros que saíram ilesos do acidente para ajudar os mais de cem vitimados. Uma tragédia é capaz de despertar os mais elevados princípios civilizacionais em qualquer ser humano. Afinal o que move a civilização, o drama ou razão?
Após apuradas as causas do acidente, o conflito se estabeleceu. De um lado, os gerentes da concessionária dizendo que o maquinista e o controlador de tráfego eram os culpados, de outro, o sindicato dos ferroviários dizendo que a estrutura das linhas e dos trens estava deteriorada. Kal, ainda extremamente abalado com a morte de sua mãe, sabia que a empresa apenas maquiava as estações, mas não investia um centavo na malha ferroviária. A concessionária indicou os culpados e os demitiu. Não deu outra, a assembléia fez uma convocação que foi prontamente atendida pelos operários. Seguiu-se uma greve, passeatas e idas ao Palácio Tiradentes.
Assentada a poeira do tumulto, uma grande homenagem foi feita à mãe de Kal, a Dona Henrinete ganhou até um trem com o seu nome. Kal manteve a sua ética racional, mas depois do acidente passou a se apegar a ela pelo afeto que sentia aos demais companheiros. As injustiças surgem nos corações e não nas mentes – pensou Kal enquanto observava o asfalto fumar o aguaceiro que caía num domingo abrasador de janeiro.
CX