Autor: José Renato de Carvalho Baptista.
E-mail: zrbaptista@terra.com.br
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Boa leitura:
“Habituado aos uniformes simples da colônia espanhola, Ti Noel descobria de repente, com assombro, a pompa do estilo napoleônico que os homens de sua raça tinham elevado a um grau de ostentação ainda ignorado pelos próprios generais do corso.(...) Porém, o que mais assombrava Ti Noel era a revelação de que esse mundo tão prodigioso como nunca tinham visto os governadores franceses do Cabo, era um mundo de negros” – Alejo Carpentier
O realismo fantasioso de Alejo Carpentier nos leva a um passeio pela história de um país que nasce marcado por fortes contradições. Pode soar repetitivo apontar que nações são construídas a partir de contradições, afinal a tradição hegeliana e marxista que orienta boa parte das análises dos processos históricos, aponta justamente para o fato de que a história se faz exatamente a partir das contradições. Se por um lado isso pode parecer óbvio, de outro lado falar da história do Haiti, e a ficção de Carpentier é um espaço privilegiado para tal percepção, significa falar de um lugar onde a história é de fato o lugar da contradição.
Palco de uma luta curiosa, entre a afirmação de uma nação autônoma, destinada a seguir o seu caminho de independência face ao sistema colonial, num momento histórico de rupturas radicais: a crise do Antigo Regime, o surgimento da moderna noção de indivíduo e dos direitos naturais do homem, e a suprema contradição de se constituir como nação independente que nasce de uma rebelião de escravos. O Haiti é um insuportável contra-senso num mundo onde se fala em direitos do homem e liberdades individuais e, ao mesmo tempo, toda superestrutura material esteja sustentada no trabalho escravo e no sistema colonial. No momento em que surge como nação, o Haiti parece a negação de todos os pressupostos do mundo vigente.
Mais do que isso o Haiti nasce com a permanente contradição interna entre ser uma pátria livre, autônoma, constituída a partir do desejo de seguir o seu próprio caminho, construir uma civilização em novas bases ou render-se aos valores de seus ex-colonizadores, a tensão de construir uma nação negra com valores civilizatórios “brancos”. É a contradição absoluta entre ser uma França Negra, uma civilização francesa constituída de homens negros, ou uma África Americana, uma civilização de bases africanas nas América. Será sobre este permanente debate que atravessa o século XIX que vai se erigir a idéia de nação no Haiti.
Nas páginas ficcionais de “O reino deste mundo” de Alejo Carpentier, através do personagem Ti Noel, vemos as diversas tensões que constituem o Haiti como nação. Inicialmente o mundo do colonizador se opõe às reminiscências de uma África sonhada, mítica, de homens bravos, que são ao mesmo tempo reis, sacerdotes e guerreiros. O mundo francês é representado pelo fraco senhor Lenormand de Mezy oposto ao bravo feiticeiro Mackandal, cujos poderes mágicos serão invocados um dia por Buckman, anunciando as guerras de libertação. Depois, a volta de Ti Noel a um país onde a gala dos soldados do imperador Henri Christophe, um negro, parece falar da construção de um mundo branco sob a pele negra, marcado por horrores semelhantes àqueles vividos por Ti Noel na condição de escravo. Por fim, o mundo dos mulatos republicanos, com réguas e compassos tentando medir e ordenar o novo mundo segundo a Razão, mundo estranho ao qual Ti Noel, já velho e cansado demais, prefere recusar, transformar-se em animal e esquecer a pátria sonhada como terra da liberdade, como lugar de reviver a grande África perdida.
Se no realismo fantasioso de Carpentier sobra força a tais tensões, a análise histórica do processo de independência do Haiti não é menos rica em contradições. A ficção de Carpentier, aliás, brota justamente das contradições reais do processo histórico e, sobretudo, todos os indícios relacionados com a independência do Haiti nos conduzem invariavelmente a perceber o país se constituindo como uma comunidade étnica, não apenas pelos discursos de formação nacional, mas em especial pelo plano das relações internacionais nas quais o Haiti se encontra inserido no século XIX.
O trabalho que apresento aqui pretende exatamente discutir estas tensões constitutivas deste país singular das América, à luz da bibliografia do curso de Relações Interétnicas. Inicialmente proponho uma análise do conceito de nação e a relação entre etnicidade e construção nacional. Para tanto proponho uma discussão desta bibliografia com autores haitianos, especialmente Joseph Antenor Firmin e Jean Price-Mars, cuja preocupação fundamental se dirigia a uma busca do pleno reconhecimento da singularidade haitiana, uma nação surgida a partir de uma revolução nacional onde papel dos escravos foi essencial.
De um lado Firmin se coloca num debate essencial do século XIX, sendo um dos principais críticos das teorias raciais, contrapondo sua obra ao famoso trabalho do Conde de Gobineau, de outro lado, Price-Mars será o principal defensor da singularidade da cultura haitiana, exaltando os valores próprios desta, como um modelo a ser seguido pelas nações americanas e africanas. A principal contribuição de Price-Mars se situa no campo do reconhecimento, na percepção de que o Haiti não pode ser colocado como uma nação inferior às demais, recusando a idéia de que um país formado por ex-escravos esteja abaixo das demais nações, reconhecendo na herança africana certos traços diacríticos que afirmam de um lado a singularidade e de outro a inscrição desta mesma cultura em condições de igualdade com as demais no plano geral da humanidade.
O trabalho divide-se em três seções que discutem inicialmente os diversos aspectos relacionados ao conceito de nação, construção nacional e etnicidade. A segunda seção do trabalho discute a idéia da “França Negra”, o problema de constituir uma nação e as bases fundamentais deste processo. A terceira e última parte analisa as questões abordadas por Firmin e Price-Mars na busca de um caminho autônomo para o Haiti como nação.